Estou aqui, olhando para o quadro de horror pintado por você, que começou surpreendendo a família que se preparava, na segunda-feira, para mais um dia de trabalho...
Sabe, a menina que jaz agora num caixão ainda vive aqui na minha memória. As faces rubras no momento de uma brincadeira. A voz sumida, apagada por tanta timidez. O olhar carinhoso, o esforço por aprender. Também vive noutra imagem, quando nos encontrávamos antes de sete e meia da manhã no estacionamento da escola, ela no volante, deixando a mãe no trabalho. Vivia estudando e se especializando, cheia de planos de como fazer melhor o seu trabalho. E enchia a mãe e a mim, sua amiga, de orgulho: sim, nossas meninas cresceram. Ela, a mocinha, era mais um dos elos que me irmanava à sua mãe, já tão querida por mim, Me despedaça pensar que foi ao volante que ela viveu seu último momento...
E o pai dela, esposo da minha amiga? Um homem amoroso. Companheiro na acepção da palavra: gente que faz companhia, que apoia, que dá suporte. Companheiro desses que não se talham facilmente por aí. Ele tinha agora duas filhas encaminhadas. Uma formada e outra acabando de ingressar na universidade... Apoiava a esposa no estudo do doutorado... Você não sabe o que é isso. Com base na minha experiência pessoal, imagino os planos que ele tinha... filhas criadas, uma esposa linda, inteligente, amada... a vida finalmente mostrando os resultados de todos os anos de luta empreendida. Provavelmente iria se dedicar mais a si mesmo, cuidar da saúde, sendo fiel, como era, à sua fé e à sua esposa. Viver "só a dois" de novo, talvez. Ser feliz até o fim. Quem não o esperaria? Seu amor estava lá, nas ações pequenas, como, tão cedo, fechar o portão para a filha que saía para o trabalho. E foi assim que você o encontrou, não foi?
Outra coisa que você não deve saber, na sua juventude cheia de coisas por fazer, é o que significa ter ter duas filhas criadas. Duas filhas competentes, comprometidas, saudáveis e alegres que, apenas por existirem dessa forma, reforçam o amor que você sente por si mesmo, pois recordam a cada momento o quanto você foi capaz de renunciar para construir aquela beleza.
Você certamente não sabe o que é ter tido um companheiro nesse tipo de empreitada, enfrentando inúmeros obstáculos para chegar ali. Alguém escolhido na tenra idade e com quem se firmou um compromisso de cuidado mútuo, cumprido no decorrer cansativo de cada hora, com fé e sobretudo, com amor. Você certamente não sabe também o que é casar-se com uma mulher e ter com os filhos dela o cuidado amoroso de um pai. A palavra padrasto nem deveria ser usada nesse caso. Eu conheci um desses, bem de perto e a palavra que mais se adequa a quem faz isso numa sociedade tão machista e negativa é AMOR e não padrasto. Mas amor é algo que você provavelmente não sabe.
Você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, provavelmente não sabe o que é ter uma irmã/irmão mais velhos, muito amados, que te servem como modelo. Não sabe da alegria de dividir a cama, a barraca no acampamento da igreja, os brinquedos, os jogos, os amigos, os álbuns de figuras. Não sabe o que é compartilhar os momentos de crescimento com os sonhos, os medos e as angústias que ele traz. Provavelmente você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, não soube o que era compartilhar com alguém muito íntimo o amor e a gratidão pelo empenho de seus pais para que você se tornasse o que é. É isso, você provavelmente não sabe o que é a dádiva de ter, em casa, uma irmã que é também sua melhor amiga. Elas, as meninas da minha amiga, antes de ontem, tinham.
Desde ontem, quando você resolveu visitar aquela família de amigos e ao padrasto de um outro amigo, sinto que meu corpo ferido foi jogado num tanque de ácido. Respirar dói. Olhando seu sorriso bonito e sua juventude, suas postagens 'se sentindo tranquilo' nas redes sociais, sinto que você não tem noção alguma da extensão do mal que fez. Olho para você, para o tremendo quadro de horror que você construiu, para sua fuga, para seu posterior 'medo' e 'entrega'. Posso estar cega, mas não vejo nada que não tenha sido planejado. E me é familiar tudo isso: já vi inúmeras vezes no cinema, os psicopatas agem assim.
Hoje amanheci destroçada. Sem dormir, não acordei. Peço perdão aos meus leitores do blog, não há pretensão de poesia aqui hoje. Porque hoje sou só dor e desespero. Não é só comoção barata por três pessoas assassinadas, motivada pelo espetáculo da TV, que eu tanto desprezo. É o desespero de ver o ódio se espraiando, incontrolável, incontornável, atingindo cada vez mais as pessoas que eu amo. De ver o ácido me cobrindo e de estar perdendo, com tanta dor, a pouca lucidez que me sobra.
Como não me ferir quando tantas, como eu, são vitimizadas por violento desrespeito? Quando tantas mulheres como eu perdem a vida nas mãos de gente que foi gerada por outras tantas mulheres como eu? Quando tantos pensam justificar o injustificável, 'informando' que a tragédia "foi motivada" por ciúme?
Infelizmente, ao contrário do que ocorreu com a vida de Jannyele, Eliézio e Ernani, esse post e essa dor, por ora, ficarão sem fim.