"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



terça-feira, 18 de agosto de 2020

"Quando a indesejada das gentes chegar..."*

MUNCH, Edvard. No leito da morte. 1895. Óleo sobre tela. 


Não, minha senhora 
eu não sou como era outrora,
quando eu corria muito pra chegar em primeiro
trocava fácil pelo trabalho, o travesseiro
respirava em stacato
ia pra festa mesmo cansada e apertando o sapato
me preocupava com a cor da moda
e em sentido lato
queria ser a que não incomoda.

Eu não tenho mais tanta energia
pra levantar cedo, iniciar o dia
tomando água com limão por brigar com a barriga
e aceitar o sim e o não de quem, para mim, nem liga.
Não tenho mais força para ver 
banhados num discurso que ordena que eu me informe
sufocados pela rotina de noticiários baratos 
a beleza e potência dos meus talentos natos,
não consigo mais manter a consciência disforme
que determina: "se atenha à realidade dos fatos"
e os meus sonhos e desejos, estrangula
e o melhor de mim, em mim, anula.

Eu não tenho mais força para competir com os irmãos
mover céus e terras e fundos e pernas e braços e mãos 
em benefício do que rezam os mais antigos sermões
nessa disputa em que ganham apenas e só os patrões.

Não minha senhora,
eu realmente não sou como era outrora
e há tempos, nessa vida
não tenho mais
nenhuma vida pra jogar fora.
 

*Verso do poema Consoada, de Manuel Bandeira.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Carta de amor*


não
nem o meu nem o seu peito
são de aço
podemos fingir por uns minutos
mas o traço
dos dias nessa história de pandemia
eliminou à força o que já nos foi paço.

despedidas sempre foram
temperadas de tristeza
mesmo aquelas mais felizes
em que quem parte a longo prazo,
vai buscar diretrizes pra vida
se encher de beleza.

como já foi, mas não é agora, o nosso caso.

sei que nós nunca nos assustamos com a distância
porque moramos perto e dentro, numa aliança
que não se desfaz por viagem, nem mudança.

mas não
nem o seu nem o meu peito
são de aço
e estamos sem socorro
silêncio e embaraço
desde ontem me explodem na garganta e na cabeça.

- é que você sofre e eu estou que morro
essa carta é o caminho que invento e percorro
pra fazer que nosso abraço, impossível, aconteça.


Para o meu vizinho, entre tantas outras coisas que ele me é, Roberto Mibielli.