"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



sábado, 15 de dezembro de 2018

Das lições de Manuel*

Picasso, O beijo. Ilustração, 1967. Museu Picasso, Paris.


Antes 
não havia texto, só gastura
uma tortura de selar
com silêncio
um desejo semente:
meus lábios já sabiam, 
dos teus, a textura
e meus olhos eram todos
ternura por seu olhar furtivo,
incrédulo e dividido
entre tomar o sabor da fruta madura
ou apenas emprestar um livro.

Suspeito mas submerso
o mútuo interesse se converteu em convite
para o suco e a conversa
para o vinho, para a praça, 
a biblioteca, a cachaça.

Benditas as verdades ditas como simples versos... 
bendita língua portuguesa à brasileira que ainda nos une.
Na madrugada avançada, 
entorpecidos e dispersos
cravamos Bandeira, Lispectorando desejos
Camoniamos pelas horas feito Freires Marcelinas 
mãos dadas com a lítera de Francisco e Ágda 
e a tua e a minha
pássaros roucos e perdidos
no barulho da floresta.
Atou-se em nós o lirismo puro dos bêbados
para que você perguntasse e eu respondesse sorrindo: 
"quer ler comigo, amanhã ou domingo?"

Repetimos muitas vezes, desde então,
sobre os mesmos versos, aquela experimentação 
em diferentes ritmos, com distintas sílabas
nas manhãs raiadas e nas noites trôpegas
mesclando com distância, sorrisos e lágrimas
o produto mais preciso e precioso de nossas bocas.

Beije-me de novo, meu bem,
física e virtualmente
que eu te beijo também,
beije-me em casa e beije-me além
escalavremos com músculos 
antes ósculos que poemas
porque as palavras
as palavras não bastam.

Benditas as línguas que desde aquela noite
vibram em versos e intertextos 
de saliva
pondo a sua pele em brasa 
e a minha carne
viva.


*Para Vitor, um ano depois, pois que"os corpos se entendem, mas as almas não".

terça-feira, 20 de novembro de 2018

No ventre blue de minha mãe

São Paulo. Imagem disponível em
https://pixabay.com/pt/brasil-edif%C3%ADcios-cidade-cityscape-1842205/
Volto a São Paulo como se voltasse ao útero
enorme e disforme útero blue.

Jovens descolados
ainda andam sós ou em bandos
ainda falam alto ou fecham as caras
cheios de certeza de que o mundo lhes serve.
Reconheço artistas, ambulantes, moradores...
Da rua
em cada esquina do Jardim Paulista
o cheiro de marijuana e tabaco,
marijuana e incenso,
marijuana e marijuana,
se instala e atravessa minhas narinas:
Ali um par de motoboys no almoço
Lá dois barbudos com coletes sujos e pesados de couro
Aqui um rapaz com camisa de clube e duas meninas.

Observo o augusto desfile
das mulheres elegantes, homens despojados
Rumo ao Centro e nos limites da Liberdade
se me escancara a realidade de cada um
disputado ou negligenciado
por igrejas, igrejas, igrejas
e sinagogas e centros e mesquitas
e partidos e lojas
e lojas
e lojas
onde curiosamente se empilham
cruzes, elefantes, olhos  gregos e figas...
sim, há ainda fé, fragmentada, diluída
como há o eterno aviso de "não toque"
nas antiguidades, nas jóias.

Há arte invisível em todo canto
enquanto os olhos colonizados
são atraídos para o anúncio de quinze metros
da nova série de garotos brancos
do serviço privado de TV.

São Paulo é essa pilha de desejos
vivos, toscos, ocos, secos,
depositados sobre objetos e objetos e objetos
mais sagrados que os corpos abjetos
que se estendem com vida
e frio
e fome
pelas calçadas
aqui
ali
e lá
sob as marquises da Paulista.

O semblante cansado
ainda predomina no metrô
inúmeros cristos crucificados dormitando de pé
pendurados pelas mãos
pregadas para o alto
no trem que se arrasta
vagarosamente sob a chuva
para a zona leste.

Crendo-se o sangue desse imenso nada
a imensidão de corpos mansos e amansados
segue feito um rio de gente pelas escadas rolantes
escorrem sendo o sumo da cidade menstruada
líquido aborto,
do suor o sal, extraído, excluído
vertido nas linhas amarela,
azul, coral...

Milhões de vidas contidas em  vagões e caixas de cimento
árvores maduras voltam seus galhos aos céus
descobrindo-se incapazes de retirar, da luz, seu alimento.

Flores de resistência rosas e amarelas
são pisoteadas nas calçadas
nas manhãs de primavera,
mas em qualquer estação
tua cor segue cinza São Paulo,
nas ruas e calçadas e muretas que resistem
enegrecidas pela tua
"anticorrupta e moderna" poluição.

Eu, tua filha ranzinza
retorno, vejo, fujo
pois muito te amo mas também odeio
e sigo não desejando teu doentio seio
E sigo dizendo que te quero,
minha Sampa,
mas não te quero não.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Desfazimento

Turner, W. Vapor sob tempestade de neve. 1842. Tate Gallery, Londres.

eu à deriva
as ondas são pessoas ao redor
muitas
ondas
por vezes um vento sopra ao longe
uma moça grita e tenho a ilusão de companhia
alguma
alguma embarcação se aproxima?
ninguém se aproxima
coisa nenhuma
o navio se afasta em busca de seu irmão
sou deixada ali,
e não precisa explicação.

naufrago na chocante realidade
da solidão acompanhada
a completa descomunhão
descomunicação
conflito tempestuoso pelo destrinchar
de más palavras
ele se afasta
observo e inventario os danos
respiro mas piora:
não há engano.

mantenho-me fixa nos calcanhares
nada mais do que o vácuo negro
do palco futuro me olha
o ruído ao redor torna todas as coisas
todas as coisas
todas
inaudíveis
eu digo
eu grito
mas não haverá embarque
o vulto se afasta
e se perde,
desfeito vira ilusão
no horizonte.

eu à deriva
tomada da realidade que me traga
as ondas são pessoas ao redor
não há engano
é dano sobre dano sobre dano
e lentamente meu coração naufraga.


quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Minha chance
Está dada
Quando te chamo
Pra que me chames
Pra que me ames
Mesmo em chamas
Exangue
Inexata
Perdida
Entre
Enxames
De exames
E
Ex.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Há cura*


naquele dia
o sol sorria beijando as ruas
as árvores as casas
as mariposas nuas
os beija-flores inocentes...
e aquele convite quente
para a abrir as asas
deixou seu coração feliz
sem muita razão.

naquele dia
provisoriamente deixou de lado
a maldade e a solidão dos outros
a hipocrisia e a fome no mundo
o escuro do medo
do inferno, o fundo
despiu tudo que lhe feria
olhou-se no espelho
e pela primeira vez reconheceu
o que queria.

para definir aquele insight
não havia palavras no glossário
gargalhou do sofrimento autoimposto
botou a melhor expressão  no rosto
"há que se inventar novo vocabulário"...
escolheu um vestido estampado
e saiu feliz consigo mesmo
sobre o primeiro salto
para fora do armário. 

*para todos os homofóbicos de plantão, com um beijo. 

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

In communication

A lua, uma noite dessas, no bairro Murilo Teixeira, Boa Vista.
 Por Elimacuxi. 

"é cada um por si, na sua própria bolha de ar" Tiê
ontem a noite
envolta em sonhos
de medo e prejuízo
dormi profunda
e docemente acolhida

desperto admitindo os vermelhos
e azuis e roxos
dessa estrada

de fato
permita que eu te afete
e sonhe e sonhes
comigo, contigo
colagem de complexa harmonia.

é um lampejo a forma
como em ti
me vejo

como traduzir minha certeza
de que não existe palavra nua?

e viva na lembrança
do seu beijo
a esperança atua:
minha bolha tocou a tua?

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Esvaziar

quando por algo me esgoto
e as mágoas não se absorvem no solo
de tristeza me emboto
e dura e fria vou direto ao outro pólo:

porque sou dupla e entre duplos me esboço
sol que brilha no resto de chuva, na poça,
lembrança de quebrada promessa
seriedade de criança fazendo troça.

e à semana que inicia já pesada
com reunião e falsidade que, no entorno
foi, por quem pensa ser correta, semeada,
entrego o resto do que sou, um resto morno
a física presença, de meu ser esvaziada.

é meu corpo quem me grita meus cansaços
quando a mente se despede e se despende
num tropel raivoso de pensamentos soltos
e nessa hora, ao fim da estrada, busco pouso
e tudo o que desejo é abrir meus braços
pra me perder no vão de braços outros.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Klimt, G. O Abraço. Parte do Friso Stoclet. 1904-08. Áustria.

"Você sabia
que tristeza contagia
e o mundo vai assim
em autofagia
numa espiral profunda
carregando a tudo
com uma energia imunda?"
me disse o sábio
quando perguntei
"por que, sem aparente motivo,
às vezes não me sinto vivo?"

desde então, muitas vezes inutilmente
tento permanecer consciente
da direção a que me leva a corrente...

Por isso hoje coloquei em perspectiva
vou me deixar sentir em carne viva
que doa o que doer, até vir o cansaço
ou uma corrente oposta
que neutralize essa tristeza,
disposta
na energia sincera de um abraço.

domingo, 2 de setembro de 2018

Domingo de tarde

Nicolas Lancret, The Swing (1794)
Indianapolis Museum of Art at Newfields

comida e sol
e folga
e cerveja
deixam a gente
levemente lesa...
tem hora melhor
para ser prato principal
e sobremesa?

domingo, 26 de agosto de 2018

Meios outros

De E.Manet, Le Suicidé, 1877. Foundation E.G. Bührle, ZuriqueSuíça
sentiu muito
e era tanto
que tinha a dizer
que mal cabia em si

mas tão pouco pode
ou conseguiu
exprimir

e quando estava
a ponto de implodir

na ânsia
de digerir
a língua
enrolou-se 
garganta adentro
empurrando angústia, tristeza
saudade e mágoa
pensou: está findo!

rompeu a traqueia
e sufocada
tentou aniquilar
com soda cáustica e água
a manhã de domingo.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Camatkarasana*

Louise Bourgeois, por Anne Leibovitz, 1997.

Conheci uma menina
que de tudo tinha medo
trovão, escuro, silêncio
tristeza, calma, folguedo
ela tanto se escondia
que já vivia em degredo:
conheci uma menina
que de tudo tinha medo.

A menina tinha medo
de se olhar no espelho
o medo doía em tudo
da cabeça até o artelho
tinha medo de correr
e machucar o joelho
tinha medo de amar
e conceber um fedelho
tinha medo de sair
e ser bulida por velho
tinha medo de facão
tinha medo de martelo
tinha medo do azul
tinha medo do amarelo
e temia as outras cores
o lilás e o vermelho
tinha medo de aprender
e tinha medo de conselho
tinha medo do diabo,
tinha medo do Evangelho
e como muito temia
e como temia a tudo
ela foi desconhecendo
a alegria do mundo
e foi se amofinando
de gente sendo arremedo:
conheci uma menina
que de tudo tinha medo.

Um dia a cidadezinha
onde a menina vivia
acordou cedo e com festa
quebrando a calmaria
a menina temerosa
perguntou: que sucedia?
e descobriu que um dever
naquela noite teria
pois que ali em sua vila
repousaria a rainha
e apresentar-se a ela
a todo súdito convinha.

Assustada a menina
sem saber o que fazer
amuou-se na escada
cheia de muito temer
como poderia ela
à rainha conhecer?
Que roupa ela usaria?
de que modo proceder?
como se comportaria?
que penteado fazer?
deveria depilar-se?
não dava pra emagrecer...
e se o sapato quebrasse
e se a roupa não servisse
e se à noite chovesse
e a rainha nem lhe visse?
e os ses foram crescendo
dentro do seu coração
as horas passavam e ela
ali sentada no chão
a perguntar-se: e se?
tomada de ansiedade
paralisada e aflita
diante da novidade
mais uma vez se escondendo
de gente sendo arremedo
porque era uma menina
uma menina com medo.

"Tenho de ver a rainha"
lembrou então, assustada
olhando naquela hora
para a poeira da estrada
e a menina correu
aprontou-se como deu
não se importou com o que quis
na roupa não tinha cor
porque só usava gris
e ao sair pela porta
viu que já não era cedo
mas sentiu-se protegida
na sombra do próprio medo.

Quando a rainha surgiu
pra receber saudação
a menina foi chamada
no meio da multidão
abriu-se o reino pra ela
que sem saber a razão
seguiu bem timidamente
olhos colados no chão.
Então disse-lhe a rainha:
"retire esse seu chapéu
e olhe na face minha
como quem olha pro céu
pensa que eu não reconheço
essa sua cicatriz?
mocinha, não há ferida
pra te impedir ser feliz...
chegue mais perto e beije
as mãos da sua rainha
e me ofereça o que trouxe
minha doce menininha."
A menina ainda surpresa
já não sabia a que vinha
e prostrou-se no lajedo
mirando sua rainha.

Tinha os cabelos compridos
o rosto seco enrugado
o corpo envelhecido
feito um tronco encurvado
mas o olhar dela brilhava
mais do que o sol no lavrado
e a menina, aquele instante
não pode crer no que via
pensou que estava sonhando
diante do que assistia.
A rainha disse: "ouça!"
e ela então ouviria
um som que lhe acompanhava
mas antes, nada dizia
era um rufar no seu peito,
seu coração que batia
e desse som, o milagre
a menina entenderia...

"Pode respirar profundo
pode se esquecer do mundo,
trouxe o que você procura
para todo esse seu medo
ansiedade e loucura
eu te revelo um segredo
tenho em minhas mãos a cura".

A menina olhou as mãos
engelhadas da mulher
que tocavam sua fronte
fazendo-a ficar de pé
emanando tanto amor
tranquilidade e leveza
que pela primeira vez
a menina viu beleza.
Daquelas mãos uma onda
de grande sabedoria
recobriu toda a menina
a iluminou e foi guia.
Foi assim que a rainha
que à menina acolhia
partiu em muitos pedaços
os medos que ela sentia
deixando-a plena de si
trabalhada na ousadia.

Ao perceber que a noite
já virava madrugada,
na velha que lhe sorria
a menina agradecida
sem então dizer mais nada
só se via refletida.

E muito tempo depois
quando veio me contar
a história que agora
eu resolvi repassar
a menina conhecida
que de tudo tinha medo
tocou também minha fronte
e me contou seu segredo:
que pra me sentir bem viva
pusesse meu medo à margem
e que seguisse serena
compondo nova paisagem
pra ter essa confiança
mesmo antes da ação
me detivesse ao rufar
do som do meu coração
olhasse minhas mãos de velha
me reconhecesse a cura...
como uma noite aprendera
quando então conhecera
a tal rainha em visagem
me ensinou a menininha
contra uma vida mesquinha
que paralisa e espezinha
há que se ter só coragem!


A todas as mulheres que, selvagens, partilham entre si suas estratégias de vitória sobre os medos.

*Camatkarasana é uma pose yogue também conhecida como Wild Thing, em que se abre o chakra da coragem.

















quarta-feira, 4 de julho de 2018

Infinita Railway...


Edouard Manet, The Railway. 1873. Galeria Nacional de Arte. Washington.
Você tem 3, 4, 5 anos. Quero te abraçar e te dizer que vai passar. A saudade que você sente da sua mãe, que foi de novo trabalhar, vai passar. Vai chegar o dia em que será você quem partirá. Não se preocupe. A distância pode crescer, se alongar. Mas o amor de vocês não passa.

Você tem 7, 8, 9 anos. Quero te abraçar e te dizer que não há de ser nada essa humilhação de ser enxotada de baixo da banca da feira. É só uma cenoura, é besteira. Haverá repolhos e maçãs e tomates meio estragados que você poderá levar pra casa. E seu pai vai cozinhar e vai ficar gostoso e isso será só lembrança um dia. Mote pra viajar e fazer poesia. Chegará um dia em que não faltará comida na sua mesa. Quero te abraçar e te dizer que isso é certeza: a vida, nesse sentido, vai mudar. E você, que durante muito tempo não chegara aos 50 quilos, um dia desejará até emagrecer. Eu sei que é difícil acreditar, mas confie em mim, isso vai mudar e nunca mais a comida haverá de te faltar.

Você já tem 10, 12 anos. Quero te abraçar e te dizer que esse barraco com coisas empilhadas, essa bagunça onde não se encontra nada, onde você se sente perdida e desorientada, essa angústia e culpa pela desarrumação, vai habitar por muito tempo os sonhos que terás nas madrugadas. E é de coração, quero que saibas que está tudo bem não conseguir organizar as ideias, não conseguir manter as memórias, carregar os souvenirs da vida, não poder manter tudo sob controle. Você vai se entristecer muito por isso, até descobrir que tudo bem não poder ajeitar tudo, tudo bem que a vida esteja vez ou outra, muitas vezes, fora do alcance da sua arrumação. Bem mais tarde você descobrirá que isso não precisa deixar mudo seu coração.

Você tem 13, 14, 15 anos. Quero te abraçar e te dizer que seus muitos irmãos não se converterão todos em amigos. Algumas daquelas de quem você hoje troca fraldas amanhã estarão separadas de você por diversos motivos, te acharão insuportável, metida, exigente, exibida. Não entenderão nem serão gratas pela ajuda que você tentar oferecer. Te julgarão sem nunca terem passado pelo que você passou. Mas quero te dizer que você conseguirá fazer de seus irmãos mais próximos em idade seus verdadeiros amigos. E você não se sentirá sozinha para sempre. Além da multidão de pessoas que sinceramente manterá enorme apreço pelo que que você é, haverá amigos fiéis com os quais você poderá contar a qualquer momento. Pode acreditar, você nunca deixará de fazer novos amigos e a amizade será sempre seu refúgio e seu unguento.   

Você tem 18, 20, 35... A vida vai seguir rápida, você se verá adulta. Quero te abraçar e dizer que embora você se mantenha por um tempo considerável ao lado das pessoas que ama, as perdas acontecerão. Amigos se perderão no caminho, uns por falta de sabedoria e pelo fim do carinho, outros pra violência da polícia e do trânsito. Quero te abraçar e dizer que o susto da gravidez não pode nem vai te derrubar. Terás três frutos incríveis, que maduros, te acompanharão com amor incondicional. Serás mãe, da forma mais extraordinária, de mulheres admiráveis que, na vida, serão tua limalha. Sofrerás dores de amores que te farão pensar em morrer. E serás órfã de pai, como suas filhas também serão, quando te tornares viúva de um iluminado ser chamado Vavá. Quero te abraçar e te dizer que isso vai doer pra sempre, mas que você se surpreenderá. Porque serás capaz de carregar com leveza a saudade e a dor. E converte-las constantemente em mais poesia e mais amor.

E quando um dia finalmente te vires bonita no espelho, quando reconheceres a importância e o deleite de teu corpo, mais de quarenta anos já terão em ti se achegado. E embora faças yoga, terapia, meditação e te cubras de tantos cuidados pra que novas tentativas de romper com a própria vida não voltem a acontecer, sentirás medo. Quero te abraçar e dizer que respires e lembres que o medo da vida pela frente só tem sentido se você desprezar todo esse passado. Você já tem a consciência de que é um cadáver adiado, tudo bem. 

Você tem 42, 43, 44. Quero te abraçar e dizer que nem sempre você dará sorte com um namorado. Haverá covardia e maldade no seu caminho. Mas a esperança de dar certo o plano de partilhar a vida te fará sempre tentar de novo, você não negará carinho. E isso é surpreendente e belo, você se renova, sonha e se entrega. Quero te dizer que apesar do medo, é coragem quem te move, você age com o coração. E nesse momento não importa apontar o quanto isso é negativo ou bom. E que deves sim abrir mão das convicções antigas e permitir-se a alegria de ser amada por quem parecer mais improvável: você pode e a alegria que virá disso te fará de novo, do amor, uma aprendiz. 

Então você completa 45. No rosto e no espírito já tens vincos... Como mulher crescida que observa a criança que ainda é, quero te abraçar, te pedir perdão pelas vezes que te abandonei e te dizer que em toda e qualquer hipótese, estarei ao seu lado. Amorosamente te reconheço como meu suporte, meu tronco, fruto e raiz. Orgulhosamente me apodero do que és, do que de ti eu fiz. Quero me abraçar e me dizer que tudo bem ser quem eu fui, ser quem eu sou e que a meta é me fazer, o mais possível, mais e mais feliz.    


domingo, 24 de junho de 2018

Predicados de domingo

Pensamos sobre nós
E pesadas as provas de que somos
Pernósticos,
pervertidos,
preguiçosos
e procrastinandores
Nos percebemos
Mais que um par perfeito:
Puta parzão da porra!

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Sísifo - de Ticiano. (1549/49). Museu Nacional do Prado.
meu espírito
anda cabisbaixo...
nas telhas, de manhã
a chuva parece
querer tocar um fado.
afasto a cama da goteira
pro outro lado

andei perscrutando
o que está se passando e
descobri porque diabos
o sono tem faltado
está pesado
andar na rua
e ver tudo molhado
cachorro, poça, chão, gente
criança seminua
tudo misturado...

levanto sem ter dormido
afasto a cama pro lado
a chuva parece novamente
querer tocar um fado
e o fato apurado
é que meu coração quer
carregar o mundo
mas está pesado.

domingo, 10 de junho de 2018

Caravaggio: São Jerônimo escrevendo, 1606, 112x157 cm, Galeria Borghese, Itália

nos últimos tempos tenho ouvido uma porção de estetas.
um poeta que me diz que poetas não falam do que é ser poeta,
outro que julga o cânone e, para dele se afastar,
acaba perpetuando-o, por ora como modelo a se evitar
outro, que sem pudor, brada que amor não é tema de que se trate
e aquele que, na entrelinha de sua fala
julga que poeta mesmo é aquele que se cala
aquele que, antes que a vida lhe arrebate, se mate.

fecho-me emimesmada em meu quarto
vaidosa de mim e dos meus defeitos todos
livre e orgulhosa de sê-lo
divagando sobre tantas regras que não quero
outras com que converso
outras que não aceito,
deixo o julgamento pros juízes
e espalho-me feito lama nesse espaço
que é frágil e cheio de deslizes
que não busca nem dispensa
café ou fama
que é construto do amor que vivo
na sala
na rua
muitas vezes na cama.

nos últimos tempos tenho ouvido uma porção de estetas
e para minha imprecisa verve de poeta
penso que eu não preciso
pois que espelho-me em mim 
e só me escrevo
(não porque a mim eu dedique enorme apreço
mas porque construo um possível lago de narciso
e me banho
nos versos que entreteço).


*a maior obra que você será capaz de construir é a si mesmo. 


terça-feira, 5 de junho de 2018

Ines Doujak, Hera, 2008.
Exhibition View CARLONE CONTEMPORARY. Belvedere2018.
photo Johannes Stoll
só e lindamente líquida
me integro ao mundo
me entrego ao mundo
me espalho
cobrindo peles
e páginas.

desincrusto de cada poro
e entrego maduro
o fruto
do profundo
e intestino desejo

amo muito
e a energia de que me despojo
suplanta o medo
escapo ilesa para ser presa
no topo que almejo:

e gozzzzzzo
gozo
goooooooozo.

domingo, 20 de maio de 2018

Às claras

Nu, folhas verdes e busto. Pablo Picasso, 1932

Amor é coisa grande pra estender na varanda
na praça, no sol, na chuva, na rua...
amor que é amor
põe a vida nua. 

Amar com leveza é coisa pros grandes
Não o espere de quem te pede segredo
ou se apequena diante do medo
porque a verdade 
é que não importa aonde
amor é coisa que, uma vez sentida,
não se esconde. 


quarta-feira, 9 de maio de 2018

Pra sua hipocrisia com um beijo.

Le baiser de L'artiste, Orlan, 1977.
você viu?
a guerra anda beijando a terra
explodindo criança, velho, igreja, homem, mulher
você viu? 

você viu?
a ganância beijando o ambiente
desfazendo rio, planta, morro, mamífero, serpente
você viu?

você viu?
a chuva beijou as roupas da família
que caminhava novas trilhas
na BR 174
em busca de boas vistas
e, quem sabe, com comida
um novo prato...
você viu???

você viu?
a miséria beijando o estômago dos meninos
e distribuindo-os pelos sinais, 
vulneráveis e franzinos
você viu? 

você viu?
todo dia 
buracos abertos no asfalto e nas consciências
beijam meninas 
as derrubam arrancando pele, 
rompendo ossos
você viu?

você viu
que no hospital
a má fé dos poderosos beija a todos
com seu atraso
e em plena agonia, 
sem leitos nem materiais
sobram soberbos os beijos do descaso 
você viu?

você viu?
me diz se você viu esses beijos?
ou se você é daquelas
que só vê, se horroriza e comove
com beijos de amor gay 
nas novelas?

quarta-feira, 11 de abril de 2018

Entre amigos

Foto: wildlifeday.org

o dia segue pro fim
flutuo na cadeira onde trabalho
trabalho, trabalho, trabalho 
e quase não caibo em mim.

não se descreve sensação tão grata
de desangústia e assossegamento, 
cansaço contente, de quê? Um abestamento
temperança na tempestade
a amizade é coisa de certeza insana: 
 - calma, bacana, que eles existem
e tudo está bem!

o coração bate tanto quanto 
ainda há coisas por fazer 
e males a sanar
e o mundo segue a girar e girar e girar.

mas hoje eu não vou,
fixei-me nesse espaço de me dar
tempo, um lar, amor, cuidados
meus amigos cultivados
amores pra se cantar

avisem à loucura que hoje não vou
porque estou plena
e a levitar. 
  

terça-feira, 10 de abril de 2018

De perdas e perdão.

The Daily Bread, by Thomas Benjamin Kennington, National Museum Liverpool.
Venta.
o sino não para de tocar na varanda
o céu azul encobre a manhã 
que se doura
lentamente.
acordo do sono induzido
venta
o coração pressente o dia
a pele se arrepia
e venta, venta, venta.
sacolas vazias alçam voo nas ruas empoeiradas
e o menino a quem falta comida, 
trabalho, casa, cama
suspira, olhos fechados:
que bom, venta...

Não há venda nos olhos de quem não vê
mas falta vontade no corpo de quem não ama.

Revejo a imagem de um menino ao longe
aos treze anos, debruçado sobre o pai morto
ouvindo seu coração silenciado:
o menino que em breve teria o dedo torto
um menino, que em breve seria só mais um
navegando na miséria de São Paulo...
 
Meu pai!
Como venta hoje na cidade ao norte!

Tocado cedo pela morte
aquele menino que o senhor foi me tira o sossego. 
O dia nasceu
e tu andas ainda, pai, 
nas memórias do meu degredo
nessas ruas que o vento lambe e teus pés jamais pisaram
te vejo em centenas de outros meninos
desesperançado, perdido, com medo, 
sozinho nas ruas, insone e faminto.
Não é segredo, meu pai,
nem é destino!
e como eu sinto...
eu sinto muito, 
perdão meu pai.  

domingo, 1 de abril de 2018

Auto de fé*

Lucas Velázquez, Auto da fé. 1853.
 [Public domain], via Wikimedia Commons
Creio.
Se o que se preza
é não temer a perigosa
curva da estrada
se o viver, eu bem sei
pode a qualquer momento
esvair-se no nada
me prostro agora
diante de ti
e nesse altar
em que fartamente
me alimento,
danço, canto, represento
acendo incenso e velas,
por um momento
ascendo ao eterno.

E não me importo
se de descrença e medo
se enchem as horas tortas
em desalinho
sou de fé, sigo o caminho estreito
faço do amor porto e morada
e gozo e reza
ressurreição na qual me faço
reinventada.

E não me importo
não me importo de ser devota
de cada centímetro do teu corpo
e de cada gota que, de ti, brota.
À tua voz, teu olhar e teu sorriso
sou fiel e rendo culto nesse instante
do modo mais precioso e preciso:
sendo sua amada
e sua amante.

*ou Poema de Páscoa para Vitor.

terça-feira, 27 de março de 2018

Pergunta aos pais.

Imagem disponivel em https://www.rapidonoar.com.br/ah-os-filhos/
Não te dói
ter de ensinar à menininha
que é perigoso estar sozinha?
Não te dói
explicar a lição
de que ela deve ter o ar mais grave e sério
ao passar perto de uma construção?
Não te dói
dizer a ela que não viaje sozinha
que não dê carona
que não fale de si
que mude sempre o caminho
que não beba, não dance
não mostre muito do corpo
não se destaque, não brilhe
não seja bela, nem livre
não sorria para estranhos
e que se cubra de remorso
quando a violência lhe encontre?
Eu te digo, não me dói
na verdade me destrói
corrói a alma e o osso
repetir essas noções
como se fôssemos frágeis
quando a verdade
é que a única fragilidade
tristemente repetida
é a do valor que os homens
dão à nossa feminina vida.

domingo, 18 de março de 2018

Aviso - ainda que eu ache que você saiba

"Eu sou o cio da tribo e posso até fecundar"*

Quando amo
sem medo ou engano
dou
dou minha casa, meu carro, meus livros
meus sorrisos, meu dinheiro,
meu afeto
meu corpo e seus produtos
por completo
dou a pele, as mucosas, os olhares...
Se quiseres
serão teus os gozos de esquecer o tempo
as unhas e os dentes
a saliva
os pensamentos
e em cada pelo
um apelo da carne viva.

Dou-te cores de cegar
dores de tirar dos trilhos
e quando você me acessar
pulsando o amor em meus sistemas
dou-te filhos, muitos filhos:
os meus e os teus poemas.


*Neuber Uchoa em Cruviana

terça-feira, 6 de março de 2018

Inflamada

acordo mar em ressaca
espinheiro espraiando por dentro
machucando a qualquer movimento
e me impondo
silêncio
e parada.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Eu, humano

disponível em http://www.soues.com.br/plus/modulos/agenda/ver.php?id=192&categoria=5

Eu sou, pois sei que sou e não sou
quarta, domingo e segunda
joelho e bunda, cara e mão
digo sim e digo não
gosto e não gosto de chuva
sou adulto e sou criança
não me encaixo feito luva
cheio de mim e de insegurança
existência
complexa
como o que é simplório
muito sorrio e choro
vivo e versejo sem pejo
morte e vida
benefício e dano
Eu sou,
pois sei que sou
e não sou
sapiens
e
humano.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018


Chorei uma bacia inteira
o branco, o cotingo, o maú
o miang, o cachorro, o alalaú
me enchi.

o ar que me invadiu se agitou,
primaverou e sem nuvem
sol tocou-me todo o corpo,
se entremeou vagaroso
me aqueceu fazendo cor
e decretou poderoso
 - tão cedo, de mim, não sai.

e pra quem me ouviu chorar
só vim aqui avisar
tô em tempo de secar
eu tô feliz bagarai! 

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Do meu anacronismo amoroso*


"Eu ando sozinha
por cima de pedras.
Mas a flor é minha."  
Cecília Meireles

quando teus olhos 
se afogam em meu corpo 
cada poro meu vira porto, 
o tempo perde o poder
e eu simplesmente anseio 
em meu seio, para sempre,
te ancorar, te suster.
isso é amar, creio eu,
encontrar um sentido 
e ser.

II
tua presença espelhada, 
espalhada em horas de bem estar
me faz alçar voo sem sair do chão
e o clichê só comprova 
que a eterna "doce ilusão"
em mim se renova.

III
urgência sentida no agora: 
do poeta, ter e querer,
da voz, o timbre 
da pele, a textura 
do hálito, o cheiro 
e do texto, a ternura...

é e será minha meta
no gozo da hora mais pura
agir feito esteta 
que, do mundo, ignora a loucura
e por isso se empodera 
e se cura. 

IV
esse poema é sobre 
o que me encanta e descobre
e o que eu sigo, peito aberto,
acolhendo sem temor
pois que o horizonte é incerto 
e "meu peito é puro deserto"
se não está cheio de amor.

* Para Bandeira e Cecília Meireles (na foto) e todos os demais poetas modernos que me ensinaram a não ter medo do amor, a vivê-lo com urgência e alegria, mesmo diante de sua infalível falibilidade...

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Mãos do vento*

#surubaparacolorir
Em silêncio, varrendo a verve
que inválida
invertia as ondas de arrepio
vieste
morno e suave
lufada de vento ávida e viril,
vieste,
navegaste esse corpo
que se tornou todo um rio
e minha alma, vela cheia,
singra solta pelo espaço do cio.

voluntariamente atada e cega
sou vanguarda-velha 
vejo vergastada 
a voracidade da solidão
e como nada nos fora vedado 
o coração vocifera
vulnerável 
no sentido mais vil e valoroso
da palavra que em mim você destrava.

a confiança da entrega
que violenta e valente me descongela, 
é brotada semente,
vivência que assusta e adoça
e nos entres do dia-a-dia
me refaz e me remoça.

É presente do universo
a lúbrica poesia 
colhida de tuas mãos, língua, falo
frente e verso...
me sopra crepitando a superfície
e de braçada
nada em mim e em mim mergulha
me adormece e me desperta 
na forma mais líquida 
e da forma mais certa.


*Cumprindo o poema-promessa pra quem me acaricia feito vento.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

De super ar

Vitória Régia do Pantanal - Daniel de Granville.
Disponível em  
não reconheço abismo 
e como se houvera em mim
asas
sinto-me em casa
plena do que sou
aceito e acato
que não mais me afetam 
os desafetos antigos
simplesmente vou
caminho segura no fio da faca
sambo tomada de algo
entre coragem e temeridade
não há sombra de receio
nem sobra de desamor

e a superação
que faz vibrar 
cada porção da pele minha
se suporta sozinha
e aumenta expandindo meu peito
pelo jeito como vibra
o som da tua voz
o calor suave das tuas mãos 
o palavreado trôpego e contido
na tua língua

eis que és homem e ar
por isso te inspiro
ao plenamente te habitar. 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Da sua Eisoptrophobia

IN: http://memorise.org/top-10-brain-foods/5-eisoptrophobia
Era uma vez um passarinho que pensava que era pedra...

Andei pensando em você. Não do jeito habitual, nas nossas enormes similitudes, projetando o que poderia ser, sentindo sua falta, lamentando o que não foi, etc e tal...
Nove meses depois e uma hora a gente renasce, voa e vê, de longe, o que estava a acontecer... E hoje eu entendo, ah, embora palidamente, eu entendo seu medo de me saber, de me ouvir ou de me ver. Sua distância calculada e seu modo de se esconder. 
Hoje eu entendo, embora ainda não aceite, que até meu amigo você hoje se negue a ser. Hoje eu entendo, embora ache terrível, o tanto que você se esforçou pra me afastar, me espantar depois de me atrair. Lembro comovida de cada detalhe, ignorância e pedrada, cada sumiço e mensagem não respondida...  
É que eu não sabia disso, dada que estava à transparência e genuinamente interessada em me envolver. Eu não sabia disso, dado que aquele sonho, foi você quem nos propôs viver... Eu não sabia disso, do medo que você teria. Eu não sabia disso, talvez nem você sabia...
Hoje eu entendo, ah, eu imagino, que deve ser bem difícil... Deve ter sido um torturante exercício pra você, de repente, se ver encarando a própria covardia, o egoísmo, a sombra de si mesmo, em mim espelhada... Eu entregue não percebia nada, só queria estar e ser. Por pura ousadia e vício, aceitei em dupla seguir o voo, me doei, como sempre me doo, e aceitei de bom grado, de você mesmo te proteger. 

"Enfim"... essa palavra que era tão nossa! E para minha surpresa, você decretou que era o fim.

Caí com teu peso e teu medo. Desse tipo de voo não se sai ilesa. Machuquei a asa, levei um tempo em degredo... Mas pra mim, eu decido: é sempre movimento e será pro alto e avante. Cada um escolhe o que pra si, será aterrorizante e sei que é o medo de ter medo quem me paralisa. É hora de seguir planando, havendo ou não havendo brisa. Se quiser, acene pra mim aí de baixo que eu vou seguir caindo pro alto - sim, eu me acho. Te mostrei que somos pássaros, mas você não saberia...  E há tantos outros pra, no ar, nos fazer companhia... Você se surpreenderia! 

Noutra vida, na minha fantasia, serei jabuti e talvez a gente volte a se ver e eu ainda seja espelho pra ti e de mim, talvez você não tenha mais fobia... "Enfim". Tudo tanto talvez é o que faz da vida poesia, mas hoje acho que nem nisso você me entendia... De novo, eu sinto, fui eu quem entendeu você. Tô te entregando a raiva que você fez florescer, nesse lugar de memória, onde vim pra te lembrar: 
Você pensa que é pedra, por isso não pode voar. 



domingo, 7 de janeiro de 2018

Notícias do exílio, ou do Abraço de um dia.

Embrace. Da série Sweet Land of Liberty, de Trina Merry.
minha visão do paraíso
esses cento e cinquenta mil fios de cabelo
(alguns brancos),
a certeza dos duzentos e seis ossos escondidos
(e esses dentes tão brancos)
a extensão de dois metros quadrados de pele
(devidamente lavados por minha saliva),
somados aos catorze músculos movidos num sorriso teu...

(vinte quatro horas de exposição ao que irradias
deixam toda minha musculatura ativa
me colocam mais perto de deus!)
 
juntos
nesse intervalo que teu corpo leva
para produzir quase quinhentos milhões
de novas células
minhas dores voam  
feito libélulas
e meu coração bate bem mais 
que as cem mil vezes diárias habituais...
(não me surpreenderia, de verdade
se meu sangue fosse multado
por excesso de velocidade.)

e enquanto convocamos
contínua e prazerosamente
o trabalho de cinquenta e oito músculos
para inúmeros ósculos
e enquanto reciprocamente
nos fundimos sem pudor
respiro e sei
que esse torpor tem nome
e não há muito mais o que fazer...

(e que do teu lado eu ficaria
nem que fosse para ouvir a poesia 
das suas unhas a crescer.)


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Girassóis - Ou "cada um dá o que tem"

Girassóis. Van Gogh, 1888. Disponível em https://www.pinakothek.de/es
indiferença e mentira
joguinhos,
desamor e falsa lira...

à distância, reconheço
todas as formas que você usou
pra me fazer mal...

a paga por meu carinho e cuidado
por ter tentando fazer do seu peito um ninho
e por ter plantado, em memória de sua mãe,
girassóis no teu quintal.

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Imagem disponível em: http://www.facundocabral.info/plumas-invitadas-texto.php?Id=491
eu penso que sei de cor
mas sempre é nova aventura
o caminho que se traça
nessa queda pra altura...

eu penso saber, não sei!
sua carne é só surpresa,
me toca e se faz meu rei
me bagunça, me faz presa

agita cada neurose
causa mas dissipa o medo
- e eu quero mais uma dose,
isso nunca foi segredo.

a pele do meu amor
tem cheiro, gosto, textura
e eu festejo o seu retorno
pois seu retorno me cura.