Picasso, O beijo. Ilustração, 1967. Museu Picasso, Paris. |
Antes
não havia texto, só gastura
uma tortura de selar
com silêncio
um desejo semente:
meus lábios já sabiam,
dos teus, a textura
e meus olhos eram todos
ternura por seu olhar furtivo,
incrédulo e dividido
entre tomar o sabor da fruta madura
ou apenas emprestar um livro.
Suspeito mas submerso
o mútuo interesse se converteu em convite
para o suco e a conversa
para o vinho, para a praça,
a biblioteca, a cachaça.
Benditas as verdades ditas como simples versos...
bendita língua portuguesa à brasileira que ainda nos une.
Na madrugada avançada,
entorpecidos e dispersos
cravamos Bandeira, Lispectorando desejos
Camoniamos pelas horas feito Freires Marcelinas
mãos dadas com a lítera de Francisco e Ágda
e a tua e a minha
pássaros roucos e perdidos
no barulho da floresta.
Atou-se em nós o lirismo puro dos bêbados
para que você perguntasse e eu respondesse sorrindo:
"quer ler comigo, amanhã ou domingo?"
Repetimos muitas vezes, desde então,
sobre os mesmos versos, aquela experimentação
em diferentes ritmos, com distintas sílabas
nas manhãs raiadas e nas noites trôpegas
mesclando com distância, sorrisos e lágrimas
o produto mais preciso e precioso de nossas bocas.
Beije-me de novo, meu bem,
física e virtualmente
que eu te beijo também,
beije-me em casa e beije-me além
escalavremos com músculos
antes ósculos que poemas
porque as palavras
as palavras não bastam.
Benditas as línguas que desde aquela noite
vibram em versos e intertextos
de saliva
pondo a sua pele em brasa
e a minha carne
viva.
*Para Vitor, um ano depois, pois que"os corpos se entendem, mas as almas não".