sábado, 15 de dezembro de 2018

Das lições de Manuel*

Picasso, O beijo. Ilustração, 1967. Museu Picasso, Paris.


Antes 
não havia texto, só gastura
uma tortura de selar
com silêncio
um desejo semente:
meus lábios já sabiam, 
dos teus, a textura
e meus olhos eram todos
ternura por seu olhar furtivo,
incrédulo e dividido
entre tomar o sabor da fruta madura
ou apenas emprestar um livro.

Suspeito mas submerso
o mútuo interesse se converteu em convite
para o suco e a conversa
para o vinho, para a praça, 
a biblioteca, a cachaça.

Benditas as verdades ditas como simples versos... 
bendita língua portuguesa à brasileira que ainda nos une.
Na madrugada avançada, 
entorpecidos e dispersos
cravamos Bandeira, Lispectorando desejos
Camoniamos pelas horas feito Freires Marcelinas 
mãos dadas com a lítera de Francisco e Ágda 
e a tua e a minha
pássaros roucos e perdidos
no barulho da floresta.
Atou-se em nós o lirismo puro dos bêbados
para que você perguntasse e eu respondesse sorrindo: 
"quer ler comigo, amanhã ou domingo?"

Repetimos muitas vezes, desde então,
sobre os mesmos versos, aquela experimentação 
em diferentes ritmos, com distintas sílabas
nas manhãs raiadas e nas noites trôpegas
mesclando com distância, sorrisos e lágrimas
o produto mais preciso e precioso de nossas bocas.

Beije-me de novo, meu bem,
física e virtualmente
que eu te beijo também,
beije-me em casa e beije-me além
escalavremos com músculos 
antes ósculos que poemas
porque as palavras
as palavras não bastam.

Benditas as línguas que desde aquela noite
vibram em versos e intertextos 
de saliva
pondo a sua pele em brasa 
e a minha carne
viva.


*Para Vitor, um ano depois, pois que"os corpos se entendem, mas as almas não".