"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Feliz ano velho, feliz ano novo.

"Aniversário", 1942. Óleo sobre tela de Dorothea Tanning. Museu de Arte da Filadélfia.
Já tomei meu banho de cheiro, defumei a casa
acendi as velas, já firmei meu ponto.
Já estabeleci minha sankalpa, meditei uma japamala
pratiquei asanas e mudras entoando mantras.
Já rezei alto e repetido me acolhendo no manto das santas,
roguei aos anjos fazendo e pagando promessa.
Sem pressa, li o salmo e orei em silêncio,
clamando perdão ao deus renascido
já dancei em roda, celebrei com pão e vinho

Espalhei sal e mel  no caminho cozinhando ervas e versos,
recitando palavras de línguas desconhecidas.
Termina mais um ano e é vitória que se chama o sentimento
"ô glória!" ter tido peito e coração batendo para tanta fé...

Assim é. O ano todo me entreguei, oferenda
a mim, aos meus, aos que estavam, aos que chegaram
fui presença na comida, na bebida, na limpeza, no estudo
nas aulas, nos deslocamentos, nos encontros, nos desencontros
nos abraços, nos olhares,
busquei estar completa e de mim dar tudo
atando nós de afeto e semeando sem pensar na colheita.

Depois de tanto tempo acho que descobri minha receita. 
Mulher que, complexa, apenas se aceita.
Abracei em silêncio, acolhi sem medo, sorri de graça
e quando não pude 
me abracei, acolhi e sorri para mim
me dizendo baixinho: "isso também passa".
É nisso que ponho atenção no momento
fiz desse ano o que eu pude e quis e ouso dizer
que me fez feliz essa vida repleta de mandinga secreta 
construção comezinha de momentos de amor e paz
por isso abro as portas ao tal do ano novo:
pode vir, querido, 
que eu quero é mais!

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Pescadores da Costa Lee na tempestade.
J.M Turner. In: Southampton City Art Gallery

Há dias em que as horas não se ajustam aos espaços
dias em que os abraços não se insinuam nos olhares
e as distâncias parecem maiores

Há dias de vôos solitários sobre o mar bravio
em que as asas doloridas pedem parada
e nenhum porto é avistado no horizonte

Nesses dias em que o corpo grita pare
e a mente aflita quer seguir na disparada
imagino-me, pirágua no banzeiro
desviando habilmente dos escolhos

E enquanto respiro,
pesco dentro o silêncio em que me abrigo e me acolho.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Autorretrato*

elimacuxi, autorretrato, set/2019.
Meu ser é o Olimpo
onde reino em seis facetas
numa dança divinal.

Sou Demeter, a mãe
que alimenta em entrega sem igual,
e Artemis, que livre e atenta
me mantém no yoga e
ao meu corpo movimenta.
Sou Atena,
orgulhosa do meu estudo e, no meio da liça
me junta aos que berram e lutam por justiça. 
Sou Hera, que sábia e paciente,
se impõe na partilha do poder
sendo essa, que não cala, nem consente.
Sou Afrodite também,
a beleza da poesia corre em minhas veias
e a partilha amorosa é um dos meus grandes intentos.

Não crês?

Vem dessa dança a plenitude que flui em meus pensamentos
e irradia no sorriso e no brilho dos olhos, que ora vês.

Sou ainda e mais que todas, Perséfone,
estive já do outro lado do Estige,
conheço o interior das sombras que podem cobrir os atos
quando não sabemos lidar com a luz que em nós existe
e quando por vezes, insistimos em cegar.

O Olimpo sou eu e em mim se manifestam
milhares de mulheres
professoras e profetas,
donas de casa, concubinas e atletas
freiras, bruxas, putas, analfabetas
numa dança divinal que reconheço em cada irmã.

Há no meu corpo, no meu rosto
a consciência de milhares de outras mulheres
tão lindas e tão fortes quanto eu
conscientes de si, de cada poro, cada sinal
cada fio branco que lhes adorna a fronte.
E para as mulheres que se reconhecem
do alto do Olimpo que elas são,
não haverá Tártaro, nem Tânatos,
nem Hades,  nem Caronte.

Para a querida Larissa Mungai Von Atzingen, com toda minha gratidão. 

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Autobiografia

elimacuxi. Imagem tomada no Ripley's, believe it or not!
NY, dezembro de 2018. 
Quando nasci, em 04/07/1973, na cidade de São Paulo, uma atriz despontava numa das novelas da Globo e meus pais acharam boa ideia me batizar com seu nome. Por isso me chamei Elisangela, nome que eu considero muito grande, aonde já se viu obrigar uma criança a escrever um nome com dez letras e um encontro consonantal?
Minha família não era pobre, era miserável. Minha mãe, paulista que foi dada como "filha de criação" aos dez anos de idade para uma família abastada da capital, trabalhava como empregada doméstica e diarista. Meu pai, um cearense semi-analfabeto que chegou a São Paulo ainda criança, fugido da seca, era aposentado por invalidez devido a um acidente de trabalho que sofrera muito jovem, aos 18 anos, e recebia um salário mínimo que não dava para absolutamente nada. 
Até meus dez anos vivemos na Favela do Jardim Peri, no Jardim Peri Novo, zona norte da cidade de São Paulo. Tive muitas experiências difíceis nesse período, inclusive conhecendo a fome e a mendicância. Apesar disso, fui alfabetizada pelo meu pai antes mesmo de entrar na escola e o incentivo possível aos estudos era uma realidade no interior da minha família. Da primeira à quarta série tive uma professora incrível chamada Maria Otília Rodrigues Pulcinelli, que me incentivava a escrever todos os dias. Apesar de carregar graves traumas gerados pela violência da minha infância economicamente miserável, as lembranças da escola, da leitura e da escrita são muito vivas e me dão muita alegria.
Sempre em busca de trabalho, minha família se mudou algumas vezes até se fixar, em meados dos anos 80, na Vila Iolanda, Guaianases, Zona Leste de São Paulo. Ali vivi minha adolescência e juventude, vi muitos colegas e amigos de escola descobrirem as drogas, serem presos, assassinados, como infelizmente acontece com a juventude pobre de periferia até hoje. Eu, que gostava muito de ler e escrever e tinha muitos cadernos com quadrinhas e sonhava um dia ser escritora, conheci e me envolvi com jovens punks enquanto andava nos trens para procurar trabalho. Era um movimento de jovens de periferia e com eles aprendi sobre anarquismo e política. Nessa época eu estudava na Escola Estadual Balbina Netto Veloso, tive uma professora de inglês e literatura, muito inspiradora chamada Tomiko Oishi. Por incentivo dela e dos amigos do movimento político, eu lia vorazmente. Também foi nessa época que comecei a fazer teatro amador na Biblioteca Municipal Cora Coralina e fiz parte de uma Cia chamada Caras de Bronze. Foi uma experiência muito boa na minha vida, nosso texto era construído conjuntamente e eu participava ativamente disso. Durou pouco, do fim de 1988  até 1990. Ficamos em cartaz com o espetáculo "Estribucha na Lona de Cetim" por um mês, no teatro municipal Martins Pena, da Penha. Era uma política da então prefeita Luiza Erundina, investir na cultura e dar espaço pra gente como nós. Aprendi sobre Boal, participei do Festival de Teatro amador do SESC, onde fomos julgados pelo Antunes Filho, fiz teatro de rua, performances, aprendi sobre meu corpo e minha expressão.  
Uma coisa que considero importantíssima da minha biografia é que, no ano de 1989, eu votei pra presidente pela primeira vez. Fui junto com minha mãe, nossa urna era na escola em que eu estudava. Ela também votava pela primeira vez pra presidente e, por minha influência, nosso voto foi na esperança que assustava muita gente, mas não vimos nosso candidato eleito daquela vez.
Em 1990 eu me envolvi com aquele que seria meu primeiro marido e pai das minhas filhas. Éramos colegas de teatro e ele era bem mais velho que eu. Me casei no cartório e o Rui Falcão foi um dos meus padrinhos de casamento. Fomos morar perto da estação de trem, o que parecia ser uma melhora de vida, eu então trabalhava como recepcionista numa farmácia de manipulação e engravidei logo depois, eu tinha então 17 anos e estava cursando o terceiro ano do ensino médio.
Tive uma gestação relativamente tranquila e só foi observado que eu tinha três crianças em meu ventre no oitavo mês de gravidez, numa véspera de dia dos pais. Foi um susto, mas elas nasceram com saúde e foram criadas por mim com muito amor e luta. Esclareço que seu "progenitor", como elas o chamam, saiu de nossas vidas antes que elas completassem dois anos. Consegui me divorciar um tempo depois e se encerrou a participação desse homem na minha vida. Com elas, voltei a morar com minha mãe, meu pai e meus irmãos. 
Fiz curso de cabeleireira, trabalhei como manicure, cuidei de criança dos vizinhos, fiz animação de festa infantil, era fiscal de tudo quanto era eleição de sindicato e conselho que podia, fiz bico de garçonete em buffet, dava aulas de planejamento familiar para assistidos da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida. Então eu era um tipo de "voluntária assistida", juntando militância com qualquer coisa pra ganhar uns trocados, uma cesta básica, uns vales transporte e manter minhas filhas longe da fome. 
Em 1994 consegui um trabalho fixo de garçonete num restaurante chique do Jardim Anália Franco, uma área de novos ricos da cidade, aonde eu trabalhava das nove da manhã ao último cliente.  
Nas poucas horas vagas, militava nos coletivos de cultura popular do Partido dos Trabalhadores e seguia na Ação da Cidadania. Foi lá que conheci meu companheiro Vavá, que viria a se tornar um verdadeiro pai para minhas filhas. 
Em 1996 comecei a trabalhar como entrevistadora em um instituto de pesquisa de mercado. Não era trabalho fixo, mas conseguia ganhar bem mais do que nos restaurantes em que trabalhei e foi assim que eu acabei sendo contratada para fazer um trabalho de pesquisa que me trouxe a Roraima pela primeira vez, no ano de 1998. Passei três meses trabalhando no estado e, quando voltei a São Paulo, senti o impacto de ter descoberto uma vida diferente daquela de trabalhadora pobre na megalópole. No ano de 1999, eu e meu comparsa decidimos sair definitivamente de São Paulo e em janeiro de 2000, juntamos nossas trouxas, pegamos as meninas e nos mudamos para Boa Vista. 
Como parte fundamental da nossa mudança em busca de uma vida menos dura, estava a possibilidade de dar continuidade aos estudos. Eu tinha passado no vestibular da UFRR e comecei a estudar história. No ano de 2001, fui contratada pelo Colégio Objetivo Makunaima como professora e iniciei minha carreira docente. Me graduei em 2003 e no decorrer da minha vida profissional conheci muita gente boa, trabalhadora e generosa, empenhada em fazer o melhor na educação do estado. Trabalhei em praticamente todas as escolas particulares da capital, Boa Vista e nos principais cursinhos preparatórios para concursos e vestibulares. 
Durante alguns anos eu esperava um concurso da secretaria de educação, que nunca veio depois do desmonte do concursão de 2003. Nessa época, sendo mãe e esposa, eu também estava empenhada em dar tudo de mim para minha carreira profissional, o que significava escrever e ler muito sobre História. Embora eu tenha participado com sucesso de alguns concursos de poesia local, a escrita de poesia estava latente na minha vida. 
Em 2007, passei na seleção de mestrado da UFAM e me mudei temporariamente para Manaus. Foi quando mostrei o que escrevia para amigos e professores e comecei a ganhar confiança. Em 2008, depois de muito incentivo dessas pessoas e da minha família, sobretudo do meu companheiro, comecei a publicar esse blog. 
De lá para cá, participei de diversas coletâneas de poesia, publiquei poemas a convite, em revistas, jornais, fanzines, etc. Como poeta, além dos amigos, tive muito apoio dos meus alunos do Instituto Federal de Roraima, aonde estive trabalhando de 2009 a 2013. Naquele ano me integrei à Máfia do Verso, coletivo de escritores formado por iniciativa do meu amigo Roberto Mibielli (que faz aniversário hoje...) e foi por esse coletivo que lancei, em 2013, o meu livro solo Amor para quem odeia. O livro com poemas que já tinham sido publicados no blog, foi indicado como obra de referência no Vestibular da Universidade Federal de Roraima e teve uma segunda edição em 2015.

Hoje, atuo como professora de História da Arte no Curso de Artes Visuais da UFRR, onde me interesso pelas temáticas feministas, de gênero e sexualidade. Como historiadora e fotógrafa, sou parceira da Associação de Travestis e Transexuais de Roraima, ATERR na luta por direitos humanos. No campo da literatura, além de manter o blog em funcionamento há dez anos, participo de atividades literárias como saraus e encontros de escritores e estou trabalhando lentamente num projeto de livro junto com meu atual companheiro, o tradutor Vitor de Araújo. Em outubro desse ano, devo participar como escritora selecionada do Festival Literário do SESC RR. 


Esse relato autobiográfico certamente possui imprecisões, destaca apenas o que é de meu interesse no momento e está sendo escrito por uma pressão: toda vez que alguma professora ou professor de literatura (aos quais agradeço imensamente) trabalha com seus alunos sobre os meus poemas ou meu livro, grupos de adolescentes me procuram nas redes sociais buscando por 'mais informações' da minha biografia. 
A eles, e a quem interessar possa, dedico essa página com todo o carinho possível. 


  
     

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mensagem de amor possível.*

Pierre Mignard - óleo sobre tela - 143 x 115 cm - 1689 -
(Szépmûvészeti Múzeum - Budapeste)

Há tempos que respingam sobre nossa pele
de brim branco essas nódoas formadas pela insensatez:
o desrespeito, a má vontade, a indiferença, a incompreensão.

Há tempos que parece não haver poesia possível
que imagem seria lógica, lúcida e bela
entre o corpo sem vida da vereadora preta
as toneladas de lama cobrindo cidades
as oitenta balas que calaram o músico
o céu da metrópole coberto pelas cinzas do que fora floresta?

Eu sei que por vezes, diante da dor, no nosso íntimo desejamos
a estupidez de quem se evade por completo
num copo de cachaça, na maratona de série, no futebol da praça
a leve e saudável estupidez de quem se esquece do que passa lá fora 
e se aquieta com gratidão, por ora, 
num contracheque magro de servidor.
Eu também ando pensando em silêncio:
quem nos dera o tempo em que não parecesse invejável
a capacidade de comer excremento e rir feito as hienas
felizes com a carniça que alimenta e aliena...

Tateamos as horas, tontos e tristes
filhos de Clio e Calíope, abandonados à própria sorte,
nossa arte, nossos artigos, nossas palestras, nossas verdades
escorraçadas por outras verdades construídas de modo perverso e acachapante
num tsunami que prediz nosso silêncio e nossa morte.

Sei que ainda tentamos a altivez, a resistência, o enfrentamento
enquanto assistimos nossos sonhos e nossos filhos desempregados
e nos debatemos com nossos talentos, nosso conhecimento 
desprezados, desgastados, desconsiderados até o estropio.

A história e a poesia são fardos que nos atormentam e unem
por isso peço, humilde como quem já quase se afoga
diante da onda gigante que sobre nós violentamente zune: 
estiquemos os pescoços para fora dessa areia movediça, 
não nos falte um sorriso cúmplice para quem vai ao lado,
e mesmo que sejamos os filhos Saturno devorados
haverá de nos fazer justiça o próprio Tempo, alguma altura
e nenhum de nós terá de aguentar mais que uma vida dessa desventura.

*Aos amigos historiadores e poetas.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

https://oglobo.globo.com/cultura/critica-noite-em-que-nick-cave-reatou-com-sao-paulo-se-rendeu-ao-elenao-23157430
Quando apareceu para todos
o homem tão esperado
eu rezei por mim.
Abriguei-me
na caverna de sua imagem
de sua voz
e como uma devota aflita
senti como nunca sua poesia
que inteira me grita.

Cantamos em coro,
eram milhares e eu estava só
alma prostrada diante do ser que adora
com a certeza de que, embora
eu o tenha de fato avistado
apenas naquela hora
nunca
nunca
nunca, Nick
desde que o conheci,
muito outrora,
de meu peito estivestes fora.

*Nick Cave é meu Pastor, poesia não me faltará.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Mais um de amor

De Camille Claudel, La Valse, 1905.
Antes de você chegar
eu já tinha aprendido a acolher
por necessidade,
disponibilidade,
por colo ser.

Antes de você chegar
eu já tinha aprendido a cantar
por alegria, 
por agonia,
para ninar,
pra não calar.

Antes de você chegar
eu já tinha aprendido a andar
de bicicleta,
de muleta,
e no ar.

Antes de você chegar
eu já tinha aprendido a acreditar
por renitência,
por indigência,
pra me aceitar.

E para viver mais um tanto 
sem perder viço e encanto 
e do amor reaprender
o que a consciência conta
é que, quando você chegou
eu já me encontrava pronta
para mim e pra você. 
 


sábado, 23 de março de 2019

Saudade, 1899, óleo sobre tela, 197 cm x 101 cm., Almeda Júnior.
Pinacoteca de São Paulo.
Lúcia, como eu queria te contar: Quando morri, já tinha me acostumado a pintar quadros de cabeça.
Na cabeça, Lúcia.
Abrindo a enorme galeria de telas não pintadas, tem a cena colorida e em alto contraste: você, pedra desbotada sob a sombra de uma árvore, me acolhe com ternura, caminhando sobre sua pele dura, eu, pequeno e indefeso inseto, inquieto e destacado.
Tem outra muito branca, em que estamos em franca queda, flocos de neve tão suaves, leves sobre o abismo que se estende em plongé, pelo ponto de fuga.
E também aquela, mais amarela, em que sou rio sozinho, cortando o deserto dos seus sentimentos...
Pra ter fim, meio e início, é isso, Lúcia.
Suspeito do que você diria, se os visse. Talvez os chamaria de naifs.
Talvez dissesse que eram insossos e ingênuos.
Você sempre foi a mais racional, a mais crítica e mais difícil, Lúcia.
E sim, se eu fosse menos passional talvez ainda estivesse aqui, suportando seus acertos. Você, a mais correta e ponderada de nós duas.
Às vezes me arrependo de não ter te ouvido, quando me pediu pra não sair correndo, durante aquela briga, pela rua.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

elimacuxi, 2014. 

Primeiro, chuvisco:
molha aqui, ali não molha
devagar e persistente
umedecendo a terra, preparando semente

e então, 
clarão intermitente alumiando 
esporádicos detalhes não vistos
de há muito tempo quistos, tão fortemente quistos...
é ilusão? questiona meio assustado, 
sob o estrondo do trovão,
o peito desassossegado

aí desaba o aguaceiro
torrencialmente sob os poros
os pelos, a pele em toda a extensão
os zelos, as culpas, os receios ocultados nos recônditos
cada ínfimo detalhe, cada momento do dia, 
cada ideia projetada
e cada recordação.

E pouco importa nesse momento 
que a erosão seja sua mais certa consequência
esqueço que a mim, cedo ou tarde
ferirá a tempestade 
e me redescubro, senhora das águas, 
sem medo ou reserva, 
uma oxum apaixonada. 

e porque sei que minha seca e velha alma
foi feita pra ser inundada
e essa enxurrada que me leva e lava
é o combustível que à vida me move
estou certa de que não será a última vez 
que inconsequente e livre
fico feliz porque novamente chove. 

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Herança


Uma bolsa com cartas
bilhetes em guardanapo
cartões.

Dezesseis anos de entrega
absoluta
sem limite
sem vergonha
despreocupada de ser ridícula
ou ridicularizada.
Exposição completa
inconsequente
e escrita à mão.

Nessa bolsa
que receber como herança
eu jamais imaginaria
coberta de poesia e memória
reencontrei a amante
feliz e sem medo
que eu já soube ser
um dia.


(imagem disponível em https://pt.aliexpress.com/item/30Pcs-pack-Retro-memories-of-yellowed-old-letters-Nostalgic-Past-Postcard-Greeting-Card-Envelope-Gift-Birthday/32819099321.html)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Atua-se

Nunca foi segredo
Se quiseres
Faço o tipo:
Soy candela,
ou cadela,
ferrada de tucandeira,
toca,
trevo de quatro-folhas,
trava-língua,
tour na Tailândia,
tramela enferrujada,
trejeito torpe,
trança, treva, torta, arte,
teco que te agite
ponta que te dome
rede que te embala
tua insânia ou tua paz.

Bote rapaz
O que te toca
O que te invoca
E a gente faz.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Atenda-se


pode se expor
a carne tocada, macerada, amolecida pelo sol
o mesmo sol que se põe em festa,
explodindo o céu em tons de manga madura
e vai recompor
o azul profundo do dia e preparar a noite
pintando verdes e lilazes
verdes e lilazes que você 
e suas palavras
não serão capazes
de retratar. 

é porque não cabe na poesia 
isso que te escorre por entre as fendas
esse espalhar do doce que te preenche
espesso e viscoso manchando a calçada
não cabe você madura, quase decomposta
você aminoácida, você enzimática
orgânica disposta em tiras de si, 
esses instantes-armadilha de paz 
versos em forma de tempo que tapeia as dores 
e te integra plena ao universo.

porque não é traduzível o que te vem agora,
contém o desejo de organizar palavras
brincando de deus com sua verve e lavra...
- e ainda que não sirva para hoje
lembra quando estiver perdida - 
a poesia é anzol pra te fisgar pra feliz idade da vida.