"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



segunda-feira, 30 de novembro de 2015


ah essa madeira
se fincou no meu pescoço...

e em mim, refaço
(memória que se reforça)
essa coisa
de carne e osso:
tanta energia
num só abraço.

domingo, 29 de novembro de 2015

Pra quê vale a poesia?

Quando eu era bem pequena meu pai se orgulhava de me ver decorar as longas letras dos sambas do Moreira da Silva. Depois ele me ensinou a ler com um gibi do Pato Donald. Daí fui pra escola e descobri a poesia nos livros didáticos. E a coisa nunca mais parou.

Consumi vorazmente o que me caiu na mão. Alguns versos ainda estão gravados na memória, tantos anos depois: "Essa menina, tão pequenina, quer ser bailarina"; "A lua foi companheira, na praia do Vidigal, não brilhou, mas mesmo oculta, nos recordou seu luar...", "vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar..."... Ah... o tempo me trouxe muitos nomes, mas os brasileiros foram sempre a preferência. E dois portugueses, o Pessoa, que não sei bem porque na minha cabeça era o mais antigo, o pai de todos, e Camões, com seus sonetos. O discurso em verso nunca deixou de existir na minha vida. Lido, depois escrito.  

Acho que foi lá pela quinta série que eu conheci a Rita Bonfim e a Cibele Pereira. Elas gostavam de escrever. Com Cibele, eu compartilhava o diário. Com a Rita, numa lógica meio competitiva que eu herdara das cantorias de repente nordestino ouvidas em casa, comecei a fazer meus primeiros versos. Foi por ali que observei o poder terapêutico dessa prática. Com o passar dos anos, fui observando que, com a escrita, eu me escrevia, fazia-me poema, obra de arte para meu usufruto. E de quebra teria esse mundo meu, esse duplo, onde poderia fingir tão completamente que me permitiria sentir a dor da dor que deveras sentia, poderia me consumir nas horas em que não era consumida, pura mão de obra, pura carne crua a velar pela riqueza de outrem. 

Nesse contexto, muitas vezes ouvi e me perguntei: pra quê vale a poesia? Uma vez escrevi no meu diário, 1988: "adoro literatura, estudar a língua pelo que os poetas escreveram sem esperar que isso acontecesse com o que eles botaram no papel. Hoje eu estudo Florbela Espanca, será que um dia alguma coisa dessas que escrevo, meu bem, poderia ser estudada assim? HAHAHA, que bobagem!".

Era isso, a vida não dava muita chance, eu não esperava da escrita muito mais do que uma forma de me construir, tijolo a tijolo, como um porto no qual eu pudesse me esconder nas horas vagas. Observo que há muito de ego no desejo de ser estudada. Claro que eu queria ser famosa, importante, observada pela qualidade do que eu escrevia e do que eu era capaz de sentir. Quem não sonhou com coisas grandes aos quinze, dezesseis, viveu essa idade? Mas o desejo era totalmente embotado pela pessimista consciência de realidade: eu era uma adolescente mirrada, sem sorte pra conseguir trabalho, estudante noturna em escola periférica, a 'filha do lixeiro', cheia de irmãos menores. Ser escritora? Poeta? Faça-me rir, dona Eli. 

A vida passou, a poesia nunca. A falta de pretensão e a popularização dos meios digitais explicam a divulgação relativamente tardia da minha escrita, via ebook, depois via blog e depois, bem depois - e por insistência de amigos - via livro. Nunca achei que, num país de gente que mal tem o básico, a arte literária pudesse me valer mais do que me fazer a mim mesma. E embora hoje eu veja muito mais gente lendo/falando/ escrevendo poesia, não tenho certeza se isso mudou.

Mas hoje vejo minha poesia figurar como objeto de estudos de pós-graduação e conclusão de cursos de letras (que eu frustradamente não fiz). Vejo versos meus sendo fruto de questão de vestibular em duas instituições públicas do estado de Roraima, que eu amo tanto. E essas coisas me fazem voltar atrás... é impossível não observar com surpresa e gratidão que, naquele diário que eu chamava de 'meu bem', eu estava certa e errada. Sim, a poesia continua sendo só um jeito de me escrever e se tem gente que gosta é porque se vê no que escrevo e nesse movimento eu me vejo de volta, num exercício de humanidade. Onde eu estava errada? Eu tive sorte e não contava com isso. Admito, não sem uma ponta repreensível de orgulho: não era bobagem o meu desejo de um dia ver a minha escrita estudada. 



 

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Cólera dos deuses?

Eram uns olhos grandes,
uma boca grande, 
uma simpatia... 
Eram amigos comuns, era casa e bar e praça, água vinho cerveja cachaça, 
era choro e alegria... 
Era uma noite escura, a dança, o copo, a fumaça, era'studo e boemia. 
Eram livros e trabalhos, filmes, discos do caralho... era pura poesia. 

Foi assim que o terrorista invadiu o nosso peito, 
cheio de bomba o sujeito jurava que se explodia. 
Foram mãos e pés e línguas, saliva e choro e suor, 
foi entrega de cativas, foi loucura, 
é amor.

Era um bolero ou um samba? Ao vivo, na corda bamba, eu disfarçava e sorria. 
As pernas entrelaçadas sob a mesa na calçada, tu sabias, eu sabia.
Fosse em dupla, em bando, em trio, nada em nós era vazio, tudo tinha uma razão:
a verdade nos guiava, nossa pele nos guardava, fomos tema de canção.
Tu sagitário e eu câncer, um ariano, um romance e um judeu na contramão
a distância e o fogo amigo,
as lembranças, o perigo, 
as horas naquele chão... 
um bolo de chocolate, feito a cor da tua pele pras formigas da minha pia
e nós dois entrelaçados feito dois astros dourados na noite que se perdia.

tanto faz se dez ou vinte
quantos anos se passaram desde que te conheci?
eu nem sei o que já era, sei que tu, há muitas eras, já estavas bem aqui
dentro em mim, feito eu mesma, me doendo e me curando, como só eu sei fazer,
sei bem desse reencontro
desse amor que já vem pronto
com mil começos e fins
sei do destino marcado 
nos nossos nomes trocados:
tu martins e eu martins.  

(Feliz aniversário, Aguirre, cólera dos meus deuses. )

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Provocação

então vem maldita
pode chegar
vem assim toda cheia de si me maltratar
não são nem seis horas
e hoje é segunda, sabia senhora?
vem assim tripudiar sobre minha solidão
vem se fazendo de amiga
como se quisesse só me iluminar
exibindo na carne a sombra do seu amado
que nunca está em você colado
mas é raro quando de ti consegue se apartar
vem maldita me lembrar
que eu estou sozinha e esse céu largo
é todo seu
vem se vingar do tanto de foto que eu tirei
quando você, vermelha
viu a Terra devagar passar por ti
como uma loura na balada passa,
entre atrevida e folgada
provocando um casal...
pode vir, regente do meu mapa astral
joga teus raios brancos nessa minha pele
que eu só te enrosco num abraço daqueles
e te faço minha amante na noite que se inicia
veja a cor que me cobre e descobre
maldita
com quem foi que eu passei o dia?


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Quedas da lua*

Estou aqui porque me obriga a vida
e os olhos reabrem apesar da ferida
da lua tantas vezes despencado
sem palavras, sou um poema mal acabado
e se o derradeiro verso ainda não foi dito
que venha mais praça, mais vida vadia que me abraça
mais cachaça, mais frio e calor e cansaço
e queda
tanto faz se a rima não arremeda
o que antes existiu e agora findou
como o dia que nasce,
voltará a noite
essa que eu cubro de amor
pra que me acoite
até que a poesia se faça completa
e eu morra e finalmente
seja estudado e amado,
considerado "poeta".

*Uma resposta para meu parceiro e comparsa, Roberto Mibielli.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Do mal que nós fizemos*

Eram duas, a carreta passou por cima
 - mata esse filha da puta!
se aparecer por aqui vamos fazer justiça...
(na praça
as meninas brigam por macho)
 - sorri banguela agora, ladrão sem vergonha!
Eu deixava sangrar até morrer...
Vai apodrecer na cadeia, vagabunda!

E por ali
os porcos selvagens invadem
muito mais que prefeituras e casas do interior.


* Quase nunca explico os poemas, mas esse merece. É a respeito da página "Atrocidades em Roraima", que no Facebook, se pretende site de notícias/mídia. Uma página que asquerosamente comete crimes como plágio, não respeita as famílias de vítimas de acidentes, divulgando vídeos terríveis, espalha imundície e dor. Os versos são adaptações de comentários e manchetes. É terrível que se consuma tanto esse tipo de conteúdo pernicioso. Em minha opinião, algo assim deveria ser denunciado por quem de fato valoriza a vida, o bem comum, a civilidade, a justiça. 
O que mais vamos deixar invadir nossas cabeças?


terça-feira, 10 de novembro de 2015

O mal que você fez - ou carta para o "SD Quadros"

Estou aqui, olhando para o quadro de horror pintado por você, que  começou surpreendendo a família que se preparava, na segunda-feira, para mais um dia de trabalho...

Sabe, a menina que jaz agora num caixão ainda vive aqui na minha memória. As faces rubras no momento de uma brincadeira. A voz sumida, apagada por tanta timidez. O olhar carinhoso, o esforço por aprender. Também vive noutra imagem, quando nos encontrávamos antes de sete e meia da manhã no estacionamento da escola, ela no volante, deixando a mãe no trabalho. Vivia estudando e se especializando, cheia de planos de como fazer melhor o seu trabalho. E enchia a mãe e a mim, sua amiga, de orgulho: sim, nossas meninas cresceram. Ela, a mocinha, era mais um dos elos que me irmanava à sua mãe, já tão querida por mim, Me despedaça pensar que foi ao volante que ela viveu seu último momento...

E o pai dela, esposo da minha amiga? Um homem amoroso. Companheiro na acepção da palavra: gente que faz companhia, que apoia, que dá suporte. Companheiro desses que não se talham facilmente por aí. Ele tinha agora duas filhas encaminhadas. Uma formada e outra acabando de ingressar na universidade... Apoiava a esposa no estudo do doutorado... Você não sabe o que é isso. Com base na minha experiência pessoal, imagino os planos que ele tinha... filhas criadas, uma esposa linda, inteligente, amada... a vida finalmente mostrando os resultados de todos os anos de luta empreendida. Provavelmente iria se dedicar mais a si mesmo, cuidar da saúde, sendo fiel, como era, à sua fé e à sua esposa. Viver "só a dois" de novo, talvez. Ser feliz até o fim. Quem não o esperaria? Seu amor estava lá, nas ações pequenas, como, tão cedo, fechar o portão para a filha que saía para o trabalho. E foi assim que você o encontrou, não foi?

Outra coisa que você não deve saber, na sua juventude cheia de coisas por fazer, é o que significa ter ter duas filhas criadas. Duas filhas competentes, comprometidas, saudáveis e alegres que, apenas por existirem dessa forma, reforçam o amor que você sente por si mesmo, pois recordam a cada momento o quanto você foi capaz de renunciar para construir aquela beleza.

Você certamente não sabe o que é ter tido um companheiro nesse tipo de empreitada, enfrentando inúmeros obstáculos para chegar ali. Alguém escolhido na tenra idade e com quem se firmou um compromisso de cuidado mútuo, cumprido no decorrer cansativo de cada hora, com fé e sobretudo, com amor. Você certamente não sabe também o que é casar-se com uma mulher e ter com os filhos dela o cuidado amoroso de um pai. A palavra padrasto nem deveria ser usada nesse caso. Eu conheci um desses, bem de perto e a palavra que mais se adequa a quem faz isso numa sociedade tão machista e negativa é AMOR e não padrasto. Mas amor é algo que você provavelmente não sabe.

Você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, provavelmente não sabe o que é ter uma irmã/irmão mais velhos, muito amados, que te servem como modelo. Não sabe da alegria de dividir a cama, a barraca no acampamento da igreja, os brinquedos, os jogos, os amigos, os álbuns de figuras. Não sabe o que é compartilhar os momentos de crescimento com os sonhos, os medos e as angústias que ele traz. Provavelmente você, tão jovem e tão cheio de coisas por fazer, não soube o que era compartilhar com alguém muito íntimo o amor e a gratidão pelo empenho de seus pais para que você se tornasse o que é. É isso, você provavelmente não sabe o que é a dádiva de ter, em casa, uma irmã que é também sua melhor amiga. Elas, as meninas da minha amiga, antes de ontem, tinham.

Desde ontem, quando você resolveu visitar aquela família de amigos e ao padrasto de um outro amigo, sinto que meu corpo ferido foi jogado num tanque de ácido. Respirar dói. Olhando seu sorriso bonito e sua juventude, suas postagens 'se sentindo tranquilo' nas redes sociais, sinto que você não tem noção alguma da extensão do mal que fez. Olho para você, para o tremendo quadro de horror que você construiu, para sua fuga, para seu posterior 'medo' e 'entrega'. Posso estar cega, mas não vejo nada que não tenha sido planejado. E me é familiar tudo isso: já vi inúmeras vezes no cinema, os psicopatas agem assim.

Hoje amanheci destroçada. Sem dormir, não acordei. Peço perdão aos meus leitores do blog, não há pretensão de poesia aqui hoje. Porque hoje sou só dor e desespero. Não é só comoção barata por três pessoas assassinadas, motivada pelo espetáculo da TV, que eu tanto desprezo. É o desespero de ver o ódio se espraiando, incontrolável, incontornável, atingindo cada vez mais as pessoas que eu amo. De ver o ácido me cobrindo e de estar perdendo, com tanta dor, a pouca lucidez que me sobra.

Como não me ferir quando tantas, como eu, são vitimizadas por violento desrespeito? Quando tantas mulheres como eu perdem a vida nas mãos de gente que foi gerada por outras tantas mulheres como eu? Quando tantos pensam justificar o injustificável, 'informando' que a tragédia "foi motivada" por ciúme?

Infelizmente, ao contrário do que ocorreu com a vida de Jannyele, Eliézio e Ernani, esse post e essa dor, por ora, ficarão sem fim.

sábado, 7 de novembro de 2015

Reescritos

Fotografia de Michal Macku. In: http://www.michal-macku.eu/

Palimpsesto é nossa história
Incômoda nossa antropofagia
Rótulas no chão
Embriagados de poesia
negamos os rótulos
rastreando com os poros
cada fluido
desse desejo bem resolvido

por segundos que duram séculos
simplesmente somos
 - sem metas nem diretrizes- 
isso que tanto assusta
nesse mundo desajustado:
absolutamente felizes.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Silentes*.

Duas mulheres dançando no Moulin Rouge (Toulouse-Lautrec, 1892). Óleo sobre papelão, 80 x 93 cm. Galeria Nacional em Praga, República Tcheca.
Nada vai explicar
o gosto
dessa pele na pele
o ritmado encontro
nosso complexo paradoxo
do sou não sou
mas quero
mais quero
mais quero...

toca o bolero
esquecemos os chavões
e unidos pelo som, o suor,
o sorriso
aceitamos que o desejo
é conciso
e não é preciso
pedir explicações.

*Para Aguirre.