"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Envelhecidas

Inge Löök Oy Ab (https://www.ingelook.com/)

Amor, saudade, carinho, amizade...

Eu sei,

sou uma pessoa de palavras velhas.

Durante o dia

desavergonhadamente as uso e reuso

do jeito que são: puídas, rotas, remendadas.

À noite, me aquece uma colcha de retalhos

de versos velhos e verbos gastos. 

Sonho festas com essas partículas amorosas

sobre as quais me deito:

um leito de seixos rolados, firmes e sem arestas 

que me calçam a vida e a mente imodesta.

Mas sem elas, sinto, não tem valido quebrar silêncios. 

Sem essas palavras velhas, cansadas e fora de moda

o que penso e digo não daria uma cantiga de roda

e por certo a poesia já não me habitaria.



terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Trauma

ciclos, elimacuxi, 2020. 


Aceito todas as medidas de proteção
aceito o que diz a ciência
aceito esses dias de maldição
sem afagos, sem abraços
com redobrada angústia e preocupação.
Aceito, sem paz, o isolamento
acato obediente que cada dia se torne mais lento
e a vida vá se ajustando 
entre o nada e o sofrimento
de saber das partidas sem volta
de conhecidos, de colegas, de amigos.

Pouco a pouco, meio louco
me acostumo 
com esse novo não-caminho.
 
mas mesmo que vivo eu me mascare
e conviva com uma multidão de mascarados
mesmo que a máscara me ampare
da imagem das bocas retorcidas em desagrado
mesmo que se ignore a agonia
e que o mundo todo se mascare, enfim,
sinto que não conseguirei mascarar
o que essa vida de pandemia
tem escancarado em mim:

sem palavras e sem vontade
poeta ensaia seu fim. 


(escrito em junho de 2021)


domingo, 3 de outubro de 2021

Despeda(bra)ço*

Vivos, três, de pé 
sob o sol, domingo, manhã
de pé, três, vivos
coração pulsando no limite da pele,
no limite do mundo
três corpos de pé, vivos
respiram o céu azul, respiram a luz solar, 
respiram a poeira que o vento insiste em levantar.

Por trás das máscaras, três vivos, de pé
estacam por instantes na calçada
suspendidos e intensos 
no vácuo do impossível abraço.

E sabem do que lhes cerra o peito,
sem fiança de afeto, a faca cega que lhes serra o peito
e que o gesto paralisa e nega
mas é o jeito
e se olham, se falam: 
os livros, a amoreira,
é domingo, é cedo
há tarefas, há olheiras e olhos marejados, 
os medos estão vivos
e os três de pé, par e passo
vivos.

E só poderia ser aos pedaços
que eu conteria na pele 
a força, o peso, o volume
daquele impossível abraço. 

*Para Zanny e Edgar. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Palavra do coach interior*

Oskar Herrfurth  (1862-1934). 
Série produzida como cartões postais em Stuttgart.

"Em outra campanha, Münchhausen queria passar por cima de um pântano, mas mergulhou tão fundo nele que deveria ter morrido. A força de seu próprio braço puxou-se para fora da lama pela trança de cabelo e pelo animal, preso entre seus joelhos."


Gata preta fugida
vinte e quatro horas
no alto da mangueira
desencadeia processo
de desabamento energético
do corpo quântico:
noite maldormida
e uma enxurrada
de sentimentos tóxicos.

 - Exercite
a gratidão matutina
pelo pão dormido
festeje o dia nublado
expire o cansaço
explore o ambiente
inspire amor 
junto com a fumaça

e o rim que dói?

 - ri, que passa.

*ou da voz do Barão de Münchhausen que às vezes me toma. 



quarta-feira, 16 de junho de 2021

Serei a

que eu seja organismo, ou órgão ou corpo esvaziado
que eu seja!
que eu seja colonizada, ou colonizadora ou decolonial
que eu seja!
que eu seja centro, cânone, ou que eu seja periférica e marginal,
que eu seja!
que eu seja ora pedra, ora rio, 
sempre transbordamento.

porque em tempos de não ser,
ser por ser, seja o que for, 
é desafio
e alento. 

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A me mover no tremembé*



Nasci na Cachoeirinha, na favela do Jardim Peri Novo, no Peri Alto.
Bem pra lá do Tucuruvi... e aprendi ali
a falar, andar e acreditar que rio era um troço 
que fedia à beça:
Cabuçu, Tietê, Tamanduateí.
- Teu avô era bugre - repetia a avó italiana - bugre mesmo, do mato.
Eu ouvi, mal entendi, deixaram pra lá, guardei.
Da favela, numa manhã, fomos cuspidos 
pra lá do Jacanã, perto de Guarulhos 
e depois, de lá, de novo, pra lá de Itaquera
mas bem antes de Itaquá, praquelas bandas 
de Sapopemba, do Itaim... do lado do cemitério: 
Guaianases, onde eu cresci,
leste, longe como a peste!
Dali saí para descobrir o time do Tatuapé,
perambular no Anhagabaú atrás de emprego
e me abandonar, chorando, ida e volta 
da escuridão da Luz à Paranapiacaba 
antes de voltar pra casa 
- um jeito de matar o tempo e a fome
com a paisagem gratuita e o embalo da máquina.

Da minha juventude não há lembrança de alegria no Ibirapuera, 
de banho em Bertioga, Mongaguá ou Barequeçaba,
memória mesmo só de ônibus-trem-metrô-perua, 
intercalados, o corpo exposto em longas viagens
no caminho pela Cangaíba à Aricanduva
levando a menina que escrevia poesia 
e sonhava nas carteiras da escola
a ser mão de obra que se cala
sem nome, sem história, sem lugar
 - única forma de ser aceita e transitar - 
pelo Pacaembu, Moema, Butantã, Perdizes...

A Liberdade ali, é só um bairro, por isso fugi.

19 de abril, segundo da pandemia,
do Cambará, Boa Vista, vasculho esse palimpsesto 
e lanço em versos o som do meu peito 
roraimado, resnascido, desapagado,
macuxi.
O tambor de uma ancestralidade difusa
ressoa na carne que a cidade não conseguiu destruir, 
na carne que, ao resistir, também acusa
a falida e tosca aspiração da metrópole 
Paulista-Higienópolis.



*e dos tremembés, guarapirangas e outros terrenos que se movem em mim. 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

poema primeiro*

Lá fora chove, 
a água cobre generosamente a terra
já é abril
a temperatura caiu e aqui 
entre pilhas de textos esperando leitura
movem-se rapidamente, a partir da manhã
as estruturas do pensamento que conflitam 
atritam, machucam, apertam, constrangem
um corpo que só quer se aninhar.

Lá fora chove, 
a luz prateia a goteira e o chão, 
o som repetido chega ritmado
e é ecoado pelo meu coração.

Volto ao estado de natureza 
que ignora a nova importância 
dada às coisas que ontem não existiam
e então fujo do Benjamin 
para reencontrá-lo por uns instantes
e inscrever por dentro esse poema chuva
esse poema luz, esse poema ar 
que se move em som
e respiração
esse poema salvação no qual 
não há ordem nem desordem
nem caos, nem deleite
apenas eu inscrita em versos
de re-existência.

*sob regime de doutoramento.


sábado, 6 de março de 2021

Revolução é mulher!


(eu, no colo da minha mãe, guardadas por Iemanjá, salve salve o feminino ancestral!)


Você concorda, decerto
que o mundo precisa de conserto, não é?
Pois bora prum papo aberto?

Se quiser você pode
fazer do café seu perfume matinal
pode ou não cuidar das plantas no quintal...
mas se quiser também pode 
não saber cozinhar um ovo.
Esqueça a voz do povo!
Você pode querer ter filhos
ou não
pode sonhar ser engenheira espacial
e ser! Aqui ou no Japão.
Você pode dirigir um carro de fórmula 1
lutar MMA, pesquisar fauna marinha e viver a mergulhar
ou adotar gatos, escrever poesia e decidir que 
o melhor pra você é simplesmente consigo estar. 
Ah, também pode decidir tudo e depois
simplesmente mudar.
A liberdade de ser é o melhor presente
que podemos nos dar.

Então seja, mulher
seja bela sendo a luz que a ti revela
você pode ser gorda, alta, negra, baixa, velha, branca, 
nova, indígena, magricela ou malhada
ter a pele sobrando, em dobras, ou esticada
limpa como veio ao mundo
ou toda tatuada,
os cabelos lisos ou caindo em cachos
ou não ter cabelos! 
você pode tudo, ouça seus apelos
o que eu penso e acho 
é que é muito tonto quem tenta 
não reconhecer que ser mulher, agora e aqui
independe de qualquer condição
não tem receita,
somos tantas e diversas, trans, cis e travestis
todas donas dessa energia...

Feminina é a força que move
a revolução que esse mundo requer. 
E ela virá, da nossa força em sermos quem somos
dentre tanta coisas
a revolução que o mundo precisa
será feita pela mulher. 


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021


Talvez eu esteja falando sozinha
talvez seja minha e só minha essa angústia, essa dor
carnaval passou, foi? eu nem vi
coração no peito dando seu jeito de seguir
e a pele cansada meio amolecida e o ouvido pedindo
pra não ouvir
tanta notícia e desencarne e sofrimento
e prejuízo e mentira e engano 
tanta história desprezada entra ano e sai ano
e o povo
sem vacina e sem pudor
sorrindo por se vingar no BBB
eu no bolo
do povo
porque aqui fora, 
nada, nada, nada
e nada de novo
cada um escolhendo o algoz da vez...
 
Fui pra dentro de mim e a paz ali estava sozinha
eu queria mais e mais não tinha
por isso hoje saí pra reclamar 
Estou indignada, estou indignada!
mas nem se incomode, deixe estar
que tudo passa e essa minha raiva
fazendo pirraça
também vai passar. 


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Despedida

Esta Foto de Autor Desconhecido está licenciado em CC BY-ND


Era um tornado
O seu sorriso
Uma tempestade de areia
A alegria
Que a tudo cobria
Quando conosco você
Estava.

Que delícia era a ventania
Dos teus conhecimentos
Varrendo ignorância
e de um jeito muito próprio 
defendendo direitos...

Nesse deságue de agora
te digo que foi um furacão 
a notícia da vitória do vírus
que transformou a materialidade
do que você era
em brisa
certamente sentida
e inesquecível.


*Ao professor Marcos Braga, falecido ontem por COVID 19.