"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Pescadores da Costa Lee na tempestade.
J.M Turner. In: Southampton City Art Gallery

Há dias em que as horas não se ajustam aos espaços
dias em que os abraços não se insinuam nos olhares
e as distâncias parecem maiores

Há dias de vôos solitários sobre o mar bravio
em que as asas doloridas pedem parada
e nenhum porto é avistado no horizonte

Nesses dias em que o corpo grita pare
e a mente aflita quer seguir na disparada
imagino-me, pirágua no banzeiro
desviando habilmente dos escolhos

E enquanto respiro,
pesco dentro o silêncio em que me abrigo e me acolho.

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Autorretrato*

elimacuxi, autorretrato, set/2019.
Meu ser é o Olimpo
onde reino em seis facetas
numa dança divinal.

Sou Demeter, a mãe
que alimenta em entrega sem igual,
e Artemis, que livre e atenta
me mantém no yoga e
ao meu corpo movimenta.
Sou Atena,
orgulhosa do meu estudo e, no meio da liça
me junta aos que berram e lutam por justiça. 
Sou Hera, que sábia e paciente,
se impõe na partilha do poder
sendo essa, que não cala, nem consente.
Sou Afrodite também,
a beleza da poesia corre em minhas veias
e a partilha amorosa é um dos meus grandes intentos.

Não crês?

Vem dessa dança a plenitude que flui em meus pensamentos
e irradia no sorriso e no brilho dos olhos, que ora vês.

Sou ainda e mais que todas, Perséfone,
estive já do outro lado do Estige,
conheço o interior das sombras que podem cobrir os atos
quando não sabemos lidar com a luz que em nós existe
e quando por vezes, insistimos em cegar.

O Olimpo sou eu e em mim se manifestam
milhares de mulheres
professoras e profetas,
donas de casa, concubinas e atletas
freiras, bruxas, putas, analfabetas
numa dança divinal que reconheço em cada irmã.

Há no meu corpo, no meu rosto
a consciência de milhares de outras mulheres
tão lindas e tão fortes quanto eu
conscientes de si, de cada poro, cada sinal
cada fio branco que lhes adorna a fronte.
E para as mulheres que se reconhecem
do alto do Olimpo que elas são,
não haverá Tártaro, nem Tânatos,
nem Hades,  nem Caronte.

Para a querida Larissa Mungai Von Atzingen, com toda minha gratidão. 

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Autobiografia

elimacuxi. Imagem tomada no Ripley's, believe it or not!
NY, dezembro de 2018. 
Quando nasci, em 04/07/1973, na cidade de São Paulo, uma atriz despontava numa das novelas da Globo e meus pais acharam boa ideia me batizar com seu nome. Por isso me chamei Elisangela, nome que eu considero muito grande, aonde já se viu obrigar uma criança a escrever um nome com dez letras e um encontro consonantal?
Minha família não era pobre, era miserável. Minha mãe, paulista que foi dada como "filha de criação" aos dez anos de idade para uma família abastada da capital, trabalhava como empregada doméstica e diarista. Meu pai, um cearense semi-analfabeto que chegou a São Paulo ainda criança, fugido da seca, era aposentado por invalidez devido a um acidente de trabalho que sofrera muito jovem, aos 18 anos, e recebia um salário mínimo que não dava para absolutamente nada. 
Até meus dez anos vivemos na Favela do Jardim Peri, no Jardim Peri Novo, zona norte da cidade de São Paulo. Tive muitas experiências difíceis nesse período, inclusive conhecendo a fome e a mendicância. Apesar disso, fui alfabetizada pelo meu pai antes mesmo de entrar na escola e o incentivo possível aos estudos era uma realidade no interior da minha família. Da primeira à quarta série tive uma professora incrível chamada Maria Otília Rodrigues Pulcinelli, que me incentivava a escrever todos os dias. Apesar de carregar graves traumas gerados pela violência da minha infância economicamente miserável, as lembranças da escola, da leitura e da escrita são muito vivas e me dão muita alegria.
Sempre em busca de trabalho, minha família se mudou algumas vezes até se fixar, em meados dos anos 80, na Vila Iolanda, Guaianases, Zona Leste de São Paulo. Ali vivi minha adolescência e juventude, vi muitos colegas e amigos de escola descobrirem as drogas, serem presos, assassinados, como infelizmente acontece com a juventude pobre de periferia até hoje. Eu, que gostava muito de ler e escrever e tinha muitos cadernos com quadrinhas e sonhava um dia ser escritora, conheci e me envolvi com jovens punks enquanto andava nos trens para procurar trabalho. Era um movimento de jovens de periferia e com eles aprendi sobre anarquismo e política. Nessa época eu estudava na Escola Estadual Balbina Netto Veloso, tive uma professora de inglês e literatura, muito inspiradora chamada Tomiko Oishi. Por incentivo dela e dos amigos do movimento político, eu lia vorazmente. Também foi nessa época que comecei a fazer teatro amador na Biblioteca Municipal Cora Coralina e fiz parte de uma Cia chamada Caras de Bronze. Foi uma experiência muito boa na minha vida, nosso texto era construído conjuntamente e eu participava ativamente disso. Durou pouco, do fim de 1988  até 1990. Ficamos em cartaz com o espetáculo "Estribucha na Lona de Cetim" por um mês, no teatro municipal Martins Pena, da Penha. Era uma política da então prefeita Luiza Erundina, investir na cultura e dar espaço pra gente como nós. Aprendi sobre Boal, participei do Festival de Teatro amador do SESC, onde fomos julgados pelo Antunes Filho, fiz teatro de rua, performances, aprendi sobre meu corpo e minha expressão.  
Uma coisa que considero importantíssima da minha biografia é que, no ano de 1989, eu votei pra presidente pela primeira vez. Fui junto com minha mãe, nossa urna era na escola em que eu estudava. Ela também votava pela primeira vez pra presidente e, por minha influência, nosso voto foi na esperança que assustava muita gente, mas não vimos nosso candidato eleito daquela vez.
Em 1990 eu me envolvi com aquele que seria meu primeiro marido e pai das minhas filhas. Éramos colegas de teatro e ele era bem mais velho que eu. Me casei no cartório e o Rui Falcão foi um dos meus padrinhos de casamento. Fomos morar perto da estação de trem, o que parecia ser uma melhora de vida, eu então trabalhava como recepcionista numa farmácia de manipulação e engravidei logo depois, eu tinha então 17 anos e estava cursando o terceiro ano do ensino médio.
Tive uma gestação relativamente tranquila e só foi observado que eu tinha três crianças em meu ventre no oitavo mês de gravidez, numa véspera de dia dos pais. Foi um susto, mas elas nasceram com saúde e foram criadas por mim com muito amor e luta. Esclareço que seu "progenitor", como elas o chamam, saiu de nossas vidas antes que elas completassem dois anos. Consegui me divorciar um tempo depois e se encerrou a participação desse homem na minha vida. Com elas, voltei a morar com minha mãe, meu pai e meus irmãos. 
Fiz curso de cabeleireira, trabalhei como manicure, cuidei de criança dos vizinhos, fiz animação de festa infantil, era fiscal de tudo quanto era eleição de sindicato e conselho que podia, fiz bico de garçonete em buffet, dava aulas de planejamento familiar para assistidos da Ação da Cidadania contra a Fome e pela Vida. Então eu era um tipo de "voluntária assistida", juntando militância com qualquer coisa pra ganhar uns trocados, uma cesta básica, uns vales transporte e manter minhas filhas longe da fome. 
Em 1994 consegui um trabalho fixo de garçonete num restaurante chique do Jardim Anália Franco, uma área de novos ricos da cidade, aonde eu trabalhava das nove da manhã ao último cliente.  
Nas poucas horas vagas, militava nos coletivos de cultura popular do Partido dos Trabalhadores e seguia na Ação da Cidadania. Foi lá que conheci meu companheiro Vavá, que viria a se tornar um verdadeiro pai para minhas filhas. 
Em 1996 comecei a trabalhar como entrevistadora em um instituto de pesquisa de mercado. Não era trabalho fixo, mas conseguia ganhar bem mais do que nos restaurantes em que trabalhei e foi assim que eu acabei sendo contratada para fazer um trabalho de pesquisa que me trouxe a Roraima pela primeira vez, no ano de 1998. Passei três meses trabalhando no estado e, quando voltei a São Paulo, senti o impacto de ter descoberto uma vida diferente daquela de trabalhadora pobre na megalópole. No ano de 1999, eu e meu comparsa decidimos sair definitivamente de São Paulo e em janeiro de 2000, juntamos nossas trouxas, pegamos as meninas e nos mudamos para Boa Vista. 
Como parte fundamental da nossa mudança em busca de uma vida menos dura, estava a possibilidade de dar continuidade aos estudos. Eu tinha passado no vestibular da UFRR e comecei a estudar história. No ano de 2001, fui contratada pelo Colégio Objetivo Makunaima como professora e iniciei minha carreira docente. Me graduei em 2003 e no decorrer da minha vida profissional conheci muita gente boa, trabalhadora e generosa, empenhada em fazer o melhor na educação do estado. Trabalhei em praticamente todas as escolas particulares da capital, Boa Vista e nos principais cursinhos preparatórios para concursos e vestibulares. 
Durante alguns anos eu esperava um concurso da secretaria de educação, que nunca veio depois do desmonte do concursão de 2003. Nessa época, sendo mãe e esposa, eu também estava empenhada em dar tudo de mim para minha carreira profissional, o que significava escrever e ler muito sobre História. Embora eu tenha participado com sucesso de alguns concursos de poesia local, a escrita de poesia estava latente na minha vida. 
Em 2007, passei na seleção de mestrado da UFAM e me mudei temporariamente para Manaus. Foi quando mostrei o que escrevia para amigos e professores e comecei a ganhar confiança. Em 2008, depois de muito incentivo dessas pessoas e da minha família, sobretudo do meu companheiro, comecei a publicar esse blog. 
De lá para cá, participei de diversas coletâneas de poesia, publiquei poemas a convite, em revistas, jornais, fanzines, etc. Como poeta, além dos amigos, tive muito apoio dos meus alunos do Instituto Federal de Roraima, aonde estive trabalhando de 2009 a 2013. Naquele ano me integrei à Máfia do Verso, coletivo de escritores formado por iniciativa do meu amigo Roberto Mibielli (que faz aniversário hoje...) e foi por esse coletivo que lancei, em 2013, o meu livro solo Amor para quem odeia. O livro com poemas que já tinham sido publicados no blog, foi indicado como obra de referência no Vestibular da Universidade Federal de Roraima e teve uma segunda edição em 2015.

Hoje, atuo como professora de História da Arte no Curso de Artes Visuais da UFRR, onde me interesso pelas temáticas feministas, de gênero e sexualidade. Como historiadora e fotógrafa, sou parceira da Associação de Travestis e Transexuais de Roraima, ATERR na luta por direitos humanos. No campo da literatura, além de manter o blog em funcionamento há dez anos, participo de atividades literárias como saraus e encontros de escritores e estou trabalhando lentamente num projeto de livro junto com meu atual companheiro, o tradutor Vitor de Araújo. Em outubro desse ano, devo participar como escritora selecionada do Festival Literário do SESC RR. 


Esse relato autobiográfico certamente possui imprecisões, destaca apenas o que é de meu interesse no momento e está sendo escrito por uma pressão: toda vez que alguma professora ou professor de literatura (aos quais agradeço imensamente) trabalha com seus alunos sobre os meus poemas ou meu livro, grupos de adolescentes me procuram nas redes sociais buscando por 'mais informações' da minha biografia. 
A eles, e a quem interessar possa, dedico essa página com todo o carinho possível.