"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



quarta-feira, 21 de abril de 2021

A me mover no tremembé*



Nasci na Cachoeirinha, na favela do Jardim Peri Novo, no Peri Alto.
Bem pra lá do Tucuruvi... e aprendi ali
a falar, andar e acreditar que rio era um troço 
que fedia à beça:
Cabuçu, Tietê, Tamanduateí.
- Teu avô era bugre - repetia a avó italiana - bugre mesmo, do mato.
Eu ouvi, mal entendi, deixaram pra lá, guardei.
Da favela, numa manhã, fomos cuspidos 
pra lá do Jacanã, perto de Guarulhos 
e depois, de lá, de novo, pra lá de Itaquera
mas bem antes de Itaquá, praquelas bandas 
de Sapopemba, do Itaim... do lado do cemitério: 
Guaianases, onde eu cresci,
leste, longe como a peste!
Dali saí para descobrir o time do Tatuapé,
perambular no Anhagabaú atrás de emprego
e me abandonar, chorando, ida e volta 
da escuridão da Luz à Paranapiacaba 
antes de voltar pra casa 
- um jeito de matar o tempo e a fome
com a paisagem gratuita e o embalo da máquina.

Da minha juventude não há lembrança de alegria no Ibirapuera, 
de banho em Bertioga, Mongaguá ou Barequeçaba,
memória mesmo só de ônibus-trem-metrô-perua, 
intercalados, o corpo exposto em longas viagens
no caminho pela Cangaíba à Aricanduva
levando a menina que escrevia poesia 
e sonhava nas carteiras da escola
a ser mão de obra que se cala
sem nome, sem história, sem lugar
 - única forma de ser aceita e transitar - 
pelo Pacaembu, Moema, Butantã, Perdizes...

A Liberdade ali, é só um bairro, por isso fugi.

19 de abril, segundo da pandemia,
do Cambará, Boa Vista, vasculho esse palimpsesto 
e lanço em versos o som do meu peito 
roraimado, resnascido, desapagado,
macuxi.
O tambor de uma ancestralidade difusa
ressoa na carne que a cidade não conseguiu destruir, 
na carne que, ao resistir, também acusa
a falida e tosca aspiração da metrópole 
Paulista-Higienópolis.



*e dos tremembés, guarapirangas e outros terrenos que se movem em mim. 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

poema primeiro*

Lá fora chove, 
a água cobre generosamente a terra
já é abril
a temperatura caiu e aqui 
entre pilhas de textos esperando leitura
movem-se rapidamente, a partir da manhã
as estruturas do pensamento que conflitam 
atritam, machucam, apertam, constrangem
um corpo que só quer se aninhar.

Lá fora chove, 
a luz prateia a goteira e o chão, 
o som repetido chega ritmado
e é ecoado pelo meu coração.

Volto ao estado de natureza 
que ignora a nova importância 
dada às coisas que ontem não existiam
e então fujo do Benjamin 
para reencontrá-lo por uns instantes
e inscrever por dentro esse poema chuva
esse poema luz, esse poema ar 
que se move em som
e respiração
esse poema salvação no qual 
não há ordem nem desordem
nem caos, nem deleite
apenas eu inscrita em versos
de re-existência.

*sob regime de doutoramento.