"Uma atividade voluntária exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e alegria e de uma consciência de ser diferente de vida cotidiana." (Huizinga, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 5ed. Saão Paulo: Perspectiva, 2007)
De todos os brinquedos que a vida me deu, o que mais me cativou foi o de jogar com as palavras. O jogo se faz completo quando escrevo e alguém replica, quando replico o que escrevem... É na intenção de reunir jogadores e assistência, que meu blog é feito.



sexta-feira, 22 de julho de 2016

Abominação*

Tatouage. Jean Chaîney. 
In: http://ohbythewayblog.blogspot.com.br/2011/07/beauty-art_4959.html

Somos peritos em sobrevivência
pretos, pobres, putas
travecas, viados, machudas
transitamos perigosamente livres 
convertidos num risco 
pra você que não muda,
que não tem dúvida,
pra você que vive de bom grado o roteiro pronto
e fica até meio tonto 
de ver como reafirmamos 
nas linhas tortas da marginalização
a nossa existência e orgulho
nossa resistência contra sua humilhação.

Para seu "mundo perfeito"
que conserva o patriarcado capitalista
e tanta violência, e tanta intolerância
com exploração, ódio e incompreensão mandando na pista
somos e queremos ser perigosos
nossos sexos livres se levantam
contra seus nexos belicosos
afetos, afeitos e afoitos, nos movem
dominam pele, rim, estômago e coração
amamo-nos com pureza de corpo
e nesse seu 'mundo perfeito'
o que nos parece perfeito 
é ser abominação.


*Para Tatiana Lionço, com amor. 

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Triste crônica da nossa derrota em Vitória.

Eu não queria escrever esse texto que lê em nossos corpos essa culpa antiquissimamente plantada, nosso direito de simplesmente ser, abortado.

No dia em que livre e deliberadamente decidimos que não íamos cumprir, por algumas horas, as tarefas pre-estabelecidas para a manhã ,eu queria falar das nossas escolhas, do nosso livre passear, das descobertas pelas ruas de Vitória, da arte nas paredes e dentro de nós. Da nossa decisão de seguir à esquerda, para o Lago Azul e deixar o Mirador da Floresta, à direita, pra depois.

Nem era tudo alegria o que eu queria. Eu queria escrever um poema sobre o absurdo de extinguir onças para construir onças de pedra. Falar dos micos se equilibrando nos fios de eletricidade. Queria falar da felicidade daquele exercício de autonomia e liberdade ao qual estávamos entregues, com meu peito arfando, cansado e consciente da respiração, na subida do morro.

Mas surgiram homens. Primeiro um, parado, nos mirando. Depois outro. E outro. E nos tomou a lembrança, a sombra assustadora dos corpos femininos dilacerados, das vidas destruídas, dos montes de vítimas no rastro violento de homens e homens e homens que subjugam mulheres por serem mulheres.

E silenciosamente nos vimos, as três, em pânico. E saímos dali, o mais rápido que pudemos, lamentando a liberdade que não temos somente porque somos mulheres.

Para Evelly e Elen, que comigo fugiram da Gruta da Onça

terça-feira, 12 de julho de 2016

"Porque o instante existe e minha alma está completa..."

E eu, que desejara uma pele
de tocar
e uma boca improvável
a me dizer inaudíveis indecências
vi-me sobre o vime
da cadeira de balanço
recostada e só
ponto sem nó
perdida conta
que ninguém busca.

Na boca o ranço
e a tristeza brusca
nem cachaça nem cerveja
carne afogada de quem não deseja...

Eu que fogo fora
a ferro me ferira
não mais surfava as ondas
dessa alma que delira...
esvaziada de tudo que outrora teve sentido
mas contive em mim o gemido
e aos poucos emudeci esse pranto.

E se acaso perguntarem por mim
"como ela anda?"
diga apenas que à tarde,
na varanda,
eu canto.

domingo, 3 de julho de 2016

Presente de aniversário.

Duas da madrugada
duas pupilas
dilatam-se diante do desejo
deito-me, deixo-me...

duas mãos dadas ao desfrute sem pejo
devagar deslizam,
deveras demoram-se
doces,
débeis,
densas,
dilaceram deliciosamente a deletéria solidão
quando descem-me aos recônditos da cripta.

Eu declaro convicta
que é divina a autofagia.

Deem-me denominações descoladas
digam-me doida
pois devoro-me e dedico
deflorada
desvairada
deslumbrada
desmedida
a alma à dupla decolagem:
bela e besta!

Eu deliro:
deusa ambidestra.