Obra de León Jean Basile Perrault em www.allposters.com.br
Éramos amigos e tínhamos 16 anos. Ele se apaixonou.
Depois de muito ensaio, dúvida, medo, resolveu contar para a
mais antiga amiga o que acontecera:
- Mãe, acho que estou gostando de alguém...
Ela, entre enciumada e orgulhosa do filhote, respondeu rapidamente:
- Que não seja uma
pirainha, meu filho...
Não era. Estava apaixonado pelo melhor amigo.
A mãe lhe disse que esquecesse essa bobagem. Que tirasse
isso da cabeça. Que lhe tiraria da escola se fosse necessário. Que seu pai
ficaria furioso se descobrisse.
Apaixonado, não conseguia pensar em outra coisa ou pessoa.
Lhe agradava profundamente a voz, o modo inteligente, expressivo, espontâneo
e bonito do amigo...
Logo o pai descobriu e o interpelou. Ele respondeu com a
audácia de um menino de 16 anos apaixonado. Tomou uma surra. Suas roupas foram
jogadas na rua: expulso de casa.
Era 1989. Não compreendíamos qual era o crime de gostar ‘de
meninos e meninas’. Cantávamos a plenos pulmões que éramos tão jovens e que era
‘preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã’. Ele se virou. Amigos lhe
deram guaridas temporárias, mas era preciso arrumar um trabalho de tempo
integral. Largou da escola.
O tempo passou. Eu me casei, tive filhas. Ele, depois de
muitos trabalhos, empregou-se no Correio. Conheceu outro rapaz, com quem se
uniu. Compraram um apartamento na COHAB, estavam felizes, tinham planos. Abrigaram
um gato de rua e ajeitaram com flores e cactos a casa pela qual ainda pagariam
por muitos anos. Era 1993. Tudo parecia bem.
Uma tarde, voltando para casa, um acidente de carro, ele na
calçada: atingido. Não houve tempo de desviar. E perdi um amigo.
Morrer faz parte, já sabia, ainda que doesse muito. No
velório, cantamos nossa dor: “é tão estranho, os bons morrem jovens”. O viúvo, hostilizado
pela família de A., sofria duplamente.
Depois disso ainda fui à sua casa, chorei com ele ao saber que
a família de A. entrara com um processo para despejá-lo do apartamento, que estava em nome do filho morto.
Em 1998, por mandado da Justiça(?), a família
de A., que um dia o colocou na rua, surrado e humilhado por amar um homem, teve
definitivamente o direito a ficar com o espólio do filho.
Hoje é o dia contra a homofobia. Escrevo para
homenagear meu amigo, um homem de bem que só queria amar e ser feliz. E para
seu viúvo, que hoje felizmente refez a vida em São Paulo.
Já não sou mais ‘tão jovem’. O tempo passou rápido. Preciso tentar impedir que alguns lances dessa história se repitam, lutando contra a homofobia
e o reconhecimento pleno da União Homoafetiva. Porque todo dia é dia
de amar.
(Um dia te encontro, querido A. E cantaremos juntos que “o
sistema é mau mas minha turma é legal/ viver é foda, morrer é difícil...”. E
faremos um filme mais feliz.)