quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Louboutin

Um salto, claro,
para um momento raro:
deu a si o presente tão caro
e, tomada de ânsia e perdão,
pisou com os dentes e engoliu
o próprio coração.



segunda-feira, 24 de agosto de 2015

no fim não sabia
por quanto tempo estivera
na estrada vermelha
cobrindo-se de sol e poeira.

descobriu-se caído
aprisionado
pés rasgados sobre o pedregulho,
desgrenhado, faminto...
completamente vazio
de fé ou orgulho.

entretecido de couro e barro
mirou-se lentamente
a pele vincada como os sulcos no chão
os olhos noturnos em brasa
nenhuma brisa no pulmão

intentou erguer-se
mas com a rigidez de mil laços
as curvas da estrada impuseram-se
imperiosas
à sua coluna, suas pernas, seus braços.

e não há nada
que dele se revele
pois ali, sozinho
de caminhante
tornou-se caminho.



Sobre uma pergunta feita à Nina.*



Nem precisa responder
que eu entendo,
cada nota
cada lágrima
essa sensação
de que era completa
e infinda
a escravidão.

Entendo o cansaço
e a irritação
entendo inclusive a fuga
para a Libéria
sem filha, sem perdão
numa sobrevida
que certamente
poucos entenderão.

O que se fez das meninas?
Fomos de fato felizes,
o quê nos aconteceu, Miss Nina?

Desculpe, miss,
mas eu minto...
não entendo não!
eu apenas sinto
em cada poro,
desse corpo por horas prostrado no chão
completamente minhas
as dores da sua canção.

"*What happened, miss Simone?"

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Guerra e paz

Quando a noite se agiganta e nina o mundo
Com silêncio escuro espesso e calma e paz
Eis que o monstro manifesta seu profundo
Interesse em consumir tudo e o que mais:

Se faz lava e lava o rosto e o travesseiro
Se faz neve e cobre tudo ao meu redor
Cala o sono, a cor, o verbo, o amor inteiro
Me sufoca, estripa e grita, vencedor.

Todo dia o sol vem ver se teve termo
Essa luta cansativa e renovada
Ilumina cada canto desse ermo
Me revela a carne viva e destroçada.

O relógio se atrasou à minha espera
Fico vendo seu bater descompassado
Ele assiste e eu alimento a besta fera
Que inerme e monstruosa vive ao lado...

A enveneno pra recuperar a fome
E com ela, nos abismos me atiro
Ela ataca tudo aquilo que tem nome
E é por isso que a combato, ataco, firo.

Eu não sei o que será, se haverá trégua
Nessa luta estendida noite e dia
Meu descanso é transformar-me em rara égua
E, com asas, trotar sobre a poesia.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Do Birdman em mim.

Olha
as ervas daninhas tomam quase tudo
a nova cova da cachorra velha
se pronuncia sob a aceroleira
você lança seus crivos
as roupas jogadas sobre a cama
a secura das folhas da roseira
há essa poeira espessa sobre os livros
uma das samambaias está mais linda do que nunca
e nenhuma mini-margarida se anuncia desabrochada.

Da casa não paga
distante, sobre a serra
notícias de um gato morto
da madeira empesteada.

O sol volta, claro,
ignorando a tudo
o mundo segue seu curso
como você sabe que é e que será.

Pode verter esse mar dos olhos
pode liberar o mar vermelho dos pulsos
podes tudo, "inclusive nada"
simplesmente esconder-se no quarto escuro
ao som do ventilador que move o ar:
o ar
seguirá seu curso,
impassível.

E embora e porquê não sinta nada
você sabe profundamente
que tudo, tudo, tudo
é desprovido de sentido
e que de nada adianta
ficar repassando esse texto
porque a peça deveria ser outra
e antes da estreia fatal
não há nem haverá expectador
além de você
para esse ensaio
de ausência.