Consumi vorazmente o que me caiu na mão. Alguns versos ainda estão gravados na memória, tantos anos depois: "Essa menina, tão pequenina, quer ser bailarina"; "A lua foi companheira, na praia do Vidigal, não brilhou, mas mesmo oculta, nos recordou seu luar...", "vou danado pra Catende, vou danado pra Catende, vou danado pra Catende com vontade de chegar..."... Ah... o tempo me trouxe muitos nomes, mas os brasileiros foram sempre a preferência. E dois portugueses, o Pessoa, que não sei bem porque na minha cabeça era o mais antigo, o pai de todos, e Camões, com seus sonetos. O discurso em verso nunca deixou de existir na minha vida. Lido, depois escrito.
Acho que foi lá pela quinta série que eu conheci a Rita Bonfim e a Cibele Pereira. Elas gostavam de escrever. Com Cibele, eu compartilhava o diário. Com a Rita, numa lógica meio competitiva que eu herdara das cantorias de repente nordestino ouvidas em casa, comecei a fazer meus primeiros versos. Foi por ali que observei o poder terapêutico dessa prática. Com o passar dos anos, fui observando que, com a escrita, eu me escrevia, fazia-me poema, obra de arte para meu usufruto. E de quebra teria esse mundo meu, esse duplo, onde poderia fingir tão completamente que me permitiria sentir a dor da dor que deveras sentia, poderia me consumir nas horas em que não era consumida, pura mão de obra, pura carne crua a velar pela riqueza de outrem.
Nesse contexto, muitas vezes ouvi e me perguntei: pra quê vale a poesia? Uma vez escrevi no meu diário, 1988: "adoro literatura, estudar a língua pelo que os poetas escreveram sem esperar que isso acontecesse com o que eles botaram no papel. Hoje eu estudo Florbela Espanca, será que um dia alguma coisa dessas que escrevo, meu bem, poderia ser estudada assim? HAHAHA, que bobagem!".
Era isso, a vida não dava muita chance, eu não esperava da escrita muito mais do que uma forma de me construir, tijolo a tijolo, como um porto no qual eu pudesse me esconder nas horas vagas. Observo que há muito de ego no desejo de ser estudada. Claro que eu queria ser famosa, importante, observada pela qualidade do que eu escrevia e do que eu era capaz de sentir. Quem não sonhou com coisas grandes aos quinze, dezesseis, viveu essa idade? Mas o desejo era totalmente embotado pela pessimista consciência de realidade: eu era uma adolescente mirrada, sem sorte pra conseguir trabalho, estudante noturna em escola periférica, a 'filha do lixeiro', cheia de irmãos menores. Ser escritora? Poeta? Faça-me rir, dona Eli.
A vida passou, a poesia nunca. A falta de pretensão e a popularização dos meios digitais explicam a divulgação relativamente tardia da minha escrita, via ebook, depois via blog e depois, bem depois - e por insistência de amigos - via livro. Nunca achei que, num país de gente que mal tem o básico, a arte literária pudesse me valer mais do que me fazer a mim mesma. E embora hoje eu veja muito mais gente lendo/falando/ escrevendo poesia, não tenho certeza se isso mudou.
Mas hoje vejo minha poesia figurar como objeto de estudos de pós-graduação e conclusão de cursos de letras (que eu frustradamente não fiz). Vejo versos meus sendo fruto de questão de vestibular em duas instituições públicas do estado de Roraima, que eu amo tanto. E essas coisas me fazem voltar atrás... é impossível não observar com surpresa e gratidão que, naquele diário que eu chamava de 'meu bem', eu estava certa e errada. Sim, a poesia continua sendo só um jeito de me escrever e se tem gente que gosta é porque se vê no que escrevo e nesse movimento eu me vejo de volta, num exercício de humanidade. Onde eu estava errada? Eu tive sorte e não contava com isso. Admito, não sem uma ponta repreensível de orgulho: não era bobagem o meu desejo de um dia ver a minha escrita estudada.
Pra quem tem um desejo, já é muito caminho para conquista-lo!
ResponderExcluirParabéns!!!