segunda-feira, 16 de outubro de 2017

De uma guerra em mim.

Los desastres de la guerra, 1810-15. Francisco Goya.

como quem observa uma fera
ferida de morte
por tiro ou por corte
na jaula do zoo
me vejo e doo.

a cabeça pesa uma tonelada
e os ombros não aguentam
o peso da estrada
as pernas quebradas
me pedem pra parar.

em preto e branco
ou em explosão de cores?
que desconexa essa peça
que papel, senhores, que papel!
nem céu nem terra:
tateio meu coração
e é ao fundo do fundo do mar
que ele se aferra...
comigo não tenho calma
que papel, senhores, que papel!
o tempo me roça, cruamente
e sinto a alma, e o corpo e a mente
cedendo lentamente a seu cinzel.

nesses dias em que eu sangro mais escuro
e que futuro não parece haver
numa única célula do que sei ser,
não há pra onde recuar
e eu me empurro contra o muro
eu me jogo e me afogo
em meu próprio poço
e por mais que me debata
rasgando a pele, quebrando o osso
por mais que grite e busque palavras
que me traduzam
e me limpem com alívio do que sou
já não posso
desatar os laços
dessa angústia que me enforca.

por fora
nalgum lugar quando sorrio
eu sei que há ar, azul e vôo
mas no fundo eu sinto frio
cá dentro
tudo é lâmina e caco de vidro
mastigado e engolido...
a vida é uma escola?
tudo é prego enferrujado
fundo de garrafa, vidro quebrado
no baldio onde se joga bola...
tudo acidente previsto
eu sei, mas corri o risco
e agora danço em alguma parte
dessa carne macerada de leve
entre os dentes do destino.

sessenta e cinco dias se passaram
e mil lágrimas não operaram milagre
e tudo em mim ainda oscila
tudo em mim é matéria intranquila
que transita entre o nunca e a eternidade.
coberta de insustentável
e vergonhosa saudade
sou a um tempo o caçador
e a fera que se debate...
.
É por tudo isso
que sinto que morro
e ainda assim não ouso
pedir socorro.

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