quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Carta ao Vavá*

Comício de Lula em São Paulo, 1989.
nós na rua...
eu tenho isso vivo na memória
sua greve, minha performance nua
uma fé filha da puta que invadia nosso peito
e mantinha a gente na luta

nós na rua
em ação
cidadania contra a fome e pela vida
nós na avenida, gritando, berrando, dançando sambão
atando nós de esperança incontida
de construir algo maior do que nosso próprio coração
para além da nossa vida...

me lembro da gente na rua, enlaçados num nó, tudo junto
rindo por quem nascia, bebendo defunto
ensinando e aprendendo novas formas de afeição
pensando em quem não tinha
casa, estudo, sonho, pão...
me dói hoje
de eleição em eleição
ver campear a ignorância, a falta de amor,  a solidão
fermentam o nosso medo, sufocam nosso tesão
o conhecimento ancestral, há tanto jogado fora
e até a ciência, que é recente, se ignora
"a Terra é plana", "nunca houve ditadura"
"a vacina adoece", "o nazismo é de esquerda"

Quanta merda!
Me fecho numa prece
e peço aos deuses todos que nos guardem
dessa onda que acontece
porque fizemos história com o teu e o meu suor
e brevemente mostramos
que sim, "sabemos de cor
e só nos resta aprender".

vejo o Brasil ser tomado
por essa "gente de bem"
mostrando finalmente sua cara,
como pedia o Agenor
você tem visto esse horror?
Eu cá, sem você, me pergunto
por Maomé, Shiva, Cristo
se essa tristeza não vem
por nossa idade também
se política pra melhorar o mundo
não é coisa de vagabundo
ou ideia obsoleta
e me ouço gritar, no fundo de mim,
que Não!
que ESSA ONDA É REAÇÃO
devemos seguir em frente.

lembro de você, de mim,
fico contente
e no fim das contas me animo
a encontrar novas formas,
de política pra se fazer
de nadar contra a corrente
e estabelecer nova meta.
nossa vivência de luta é meu arrimo!
escrita por nós, com tantos nós
a nossa história recente, embora dura
destruiu a ditadura
fez o primeiro operário
e a primeira mulher presidente!
Nos orgulhemos de tê-la vivido
pois viver sem crer e lutar para melhorar o mundo
pelo amor, pela vida das pessoas
não tem nem nunca terá o menor sentido.

*ao Betinho, a mim, a você, que, embora golpeados por todos os lados, ainda lutamos por um mundo melhor.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

De uma guerra em mim.

Los desastres de la guerra, 1810-15. Francisco Goya.

como quem observa uma fera
ferida de morte
por tiro ou por corte
na jaula do zoo
me vejo e doo.

a cabeça pesa uma tonelada
e os ombros não aguentam
o peso da estrada
as pernas quebradas
me pedem pra parar.

em preto e branco
ou em explosão de cores?
que desconexa essa peça
que papel, senhores, que papel!
nem céu nem terra:
tateio meu coração
e é ao fundo do fundo do mar
que ele se aferra...
comigo não tenho calma
que papel, senhores, que papel!
o tempo me roça, cruamente
e sinto a alma, e o corpo e a mente
cedendo lentamente a seu cinzel.

nesses dias em que eu sangro mais escuro
e que futuro não parece haver
numa única célula do que sei ser,
não há pra onde recuar
e eu me empurro contra o muro
eu me jogo e me afogo
em meu próprio poço
e por mais que me debata
rasgando a pele, quebrando o osso
por mais que grite e busque palavras
que me traduzam
e me limpem com alívio do que sou
já não posso
desatar os laços
dessa angústia que me enforca.

por fora
nalgum lugar quando sorrio
eu sei que há ar, azul e vôo
mas no fundo eu sinto frio
cá dentro
tudo é lâmina e caco de vidro
mastigado e engolido...
a vida é uma escola?
tudo é prego enferrujado
fundo de garrafa, vidro quebrado
no baldio onde se joga bola...
tudo acidente previsto
eu sei, mas corri o risco
e agora danço em alguma parte
dessa carne macerada de leve
entre os dentes do destino.

sessenta e cinco dias se passaram
e mil lágrimas não operaram milagre
e tudo em mim ainda oscila
tudo em mim é matéria intranquila
que transita entre o nunca e a eternidade.
coberta de insustentável
e vergonhosa saudade
sou a um tempo o caçador
e a fera que se debate...
.
É por tudo isso
que sinto que morro
e ainda assim não ouso
pedir socorro.