quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Desabafo

Edvard Munch, Ansiedade, 1894.

É dor tanta, e saudade, e vontade frustrada 
a poesia sufocada, o coração estreito
no ar que não entra direito no peito

fogo rasteiro destruindo ninho
destruindo sonho, des-tru-in-do caminho
de cooperação e fé e unidade e luta
é sempre o mesmo signo regendo esse bando 
coisa imunda de dinheiro e sucesso e corrida e disputa
e farinha pouca meu pirão primeiro
não vem o meteoro e é tanto biscoiteiro 
e tanta raiva escorrendo pra dentro, silenciosa
é tanta amargura e postura desonrosa
é inveja e maldade que escorre da boca 
de quem erroneamente se pensava amigo...
em vão mitigo com o amor que em mim há
o ódio plantado, que se espalha daninho
mas é nota alta que minha voz não alcança.

E sei que lá vem
o zé mané me dizer que não, que é mimimi que é nhennhennhén
que todo engano tem seu motivo, "deixa pra lá que tu vive bem"
e eu ouvindo o grito seco que não sai
mas por dentro ecoa estourando tímpano, 
destruindo o sono
e é abandono o sentimento que vem no meio da tarde
com esse cheiro de veneno no ar
literalmente o cheiro de veneno no ar
"senhora, não podemos fazer nada se a senhora não puder localizar"
e saber do mercúrio na água e das travestis atacadas na noite passada,
sentir o ardor e o lacrimejar
e agradecer severinamente, 
pois só levaram o celular. 

é dor tanta, e saudade, e frustração...
tem poesia sufocada nesse coração estreito mas 
diante de tanto mal que se agiganta
só consigo gritar a tempestade de água e sal 
empedrada na minha garganta.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

A cara do vento bate na minha cara


Sino do vento da porta da frente.
 Imagem, elimacuxi.



o dia mal aclara
e a cara do vento, descaradamente fofoqueira
convida as folhas prum leva-e-traz,
passeia levantando seus fãs na poeira
irritando narizes, 
cerrando olhos, removendo quipás
com seu chicote e suas cicatrizes.

A cara do vento é meio mãe, meio capataz.

A cara do vento escancarou o dia
disputando com o sol a manhã modorrenta
acordou os capazes de ouvir a poesia 
que em suas costas carrega e sustenta
em pétala e sangue, me trouxe notícias,
de quem, pelo mundo, a vida aferventa.

A cara do vento rompeu num aviso:
se derrubou pontes ou ergueu marés,
se destelhou casas, derrubou granizo
e se rompeu a carne presa nas galés
tudo era passado, no agora presente
estava disposta a novo julgamento - 
faz cantar o sino da porta da frente
em perdão contínuo de contentamento.

E como a verdade que se escancara 
é que meu juízo à natureza não altera
a cara do vento deu na minha cara
suave e certeira,
como uma quimera.