Pierre Mignard - óleo sobre tela - 143 x 115 cm - 1689 - (Szépmûvészeti Múzeum - Budapeste) |
Há tempos que respingam sobre nossa pele
de brim branco essas nódoas formadas pela insensatez:
o desrespeito, a má vontade, a indiferença, a incompreensão.
Há tempos que parece não haver poesia possível
que imagem seria lógica, lúcida e bela
entre o corpo sem vida da vereadora preta
as toneladas de lama cobrindo cidades
as oitenta balas que calaram o músico
o céu da metrópole coberto pelas cinzas do que fora floresta?
Eu sei que por vezes, diante da dor, no nosso íntimo desejamos
a estupidez de quem se evade por completo
num copo de cachaça, na maratona de série, no futebol da praça
a leve e saudável estupidez de quem se esquece do que passa lá fora
e se aquieta com gratidão, por ora,
num contracheque magro de servidor.
Eu também ando pensando em silêncio:
quem nos dera o tempo em que não parecesse invejável
a capacidade de comer excremento e rir feito as hienas
felizes com a carniça que alimenta e aliena...
Tateamos as horas, tontos e tristes
filhos de Clio e Calíope, abandonados à própria sorte,
nossa arte, nossos artigos, nossas palestras, nossas verdades
escorraçadas por outras verdades construídas de modo perverso e acachapante
num tsunami que prediz nosso silêncio e nossa morte.
Sei que ainda tentamos a altivez, a resistência, o enfrentamento
enquanto assistimos nossos sonhos e nossos filhos desempregados
e nos debatemos com nossos talentos, nosso conhecimento
desprezados, desgastados, desconsiderados até o estropio.
A história e a poesia são fardos que nos atormentam e unem
por isso peço, humilde como quem já quase se afoga
diante da onda gigante que sobre nós violentamente zune:
estiquemos os pescoços para fora dessa areia movediça,
não nos falte um sorriso cúmplice para quem vai ao lado,
e mesmo que sejamos os filhos Saturno devorados
haverá de nos fazer justiça o próprio Tempo, alguma altura
e nenhum de nós terá de aguentar mais que uma vida dessa desventura.
*Aos amigos historiadores e poetas.