quarta-feira, 29 de março de 2017

Da inquietude dos dias.

Você não me diz, mas deixa
assim nós dois pra depois
pra depois do expediente
pra depois da conta paga
pra depois da aula dada
pra depois depois depois
e o encontro vai ficando
pra depois do seu cansaço
e o abraço, a troca, o gesto
vão passando nesse passo...

Depois o café esfria
depois nem o sono vem
o gosto vai se perdendo
o cheiro some também.
E tanta coisa bonita
amor, desejo, paixão,
se empedra e se apodrece
quando só o depois vigora...

Pelo que eu sei agora,
eu te peço, não ignora:
depois se perde, por um triz,
o que a vida trouxe de graça
e essa chance de ser feliz
deixada assim, pra depois
também passa.

terça-feira, 28 de março de 2017

Angústia confessada

Por mim
você bem que podia parar agora.
Essa chuva fina caindo lá fora
essa dor fina no entre do osso
essa angústia afiada marcando os segundos
o mundo e toda a maldade do mundo
tudo isso junto só me convence
que é injusto esse trabalho tanto
que essa luta ninguém vence...
o meu coração apertado de saudade
se aborrece ao ver o teu caminho cheio
e me pergunto, menina abandonada
se era pra não estar,
pra que veio?

É bem assim
que eu me sinto agora
por mim você bem que podia parar
por mim
já se passa da hora.

sábado, 18 de março de 2017

Aprendizados

Crying Woman, Pablo Picasso. 1937
quando sentiu aquele cheiro
atiçando a suspeita
de que morrera a emergência apaixonada,
primeiro chorou.

engasgada
esforçou-se para limpar a boca:
com palavras inexatas
e lágrimas e dor
engoliu o regurgitado coração,
e se fez silenciosa
em espera e observação.

mas foi repetido o novo gesto de tanto faz
e as novas prioridades
tomando a frente dos dias perfilados
ressaltavam para ela
um espetáculo macabro:
quase nada aprendera com a vida
e os amores passados
e mais uma vez, com susto e enfado
verificava que as horas vazias
restavam amontoadas
apenas do seu lado.



quinta-feira, 9 de março de 2017

Entre o fazer, o ter, o ser.

Detalhe de tumba do século XIX em Santarém, PA.
Eu sou do tipo que quer beijo de língua às três da tarde da quarta-feira
que põe poesia na vida, sem hora, a vida inteira
carinhosa carente,
que de carinho carece e dele se faz exigente
hedonista, não sei, mas gosto e quem não gosta de prazer?

na curva dos enta, sou a que tenta mudar
hoje estou cansada de tanta obrigação de fazer
e fazer
e fazer
e fazer
sim, posso e até quero fazer,
mas entre isso quero, sobretudo, ser
porque é preciso ser pra fazer história
quero ser mãe que acolhe e cuida no meio da madrugada
sem pensar no dia que vem e nas correções dos trabalhos e na entrega das notas
e em mais nada
porque uma filha, irmã, amiga precisa de mim no agora.
Quero ser professora que dá bronca e chance, mas nunca ignora,
quero ser aquela que abraça, recorda, aparece do nada,
a que adota o gato resgatado na estrada,
quero ser filha que manda o dinheiro necessário
sem pestanejar ou pensar na outra prestação
e quero ser a namorada que troca mensagem no meio da reunião...
Quero ser presente para quem está presente na minha vida
porque o poder mais transformador é o amor e a lida
as tarefas, as dores, as feridas e todas as coisas mais
se vão numa virada de destino
numa curva mal feita, na reação a um remédio,
pela arma na mão de um menino,
pelo safanão do homem que se pensava amar,
pela queda besta no banheiro,
pelo coração que decidiu parar,
pelo sangramento que não se pôde evitar,
pela tentativa bem sucedida
que fez da partida não desejada
um adeus completo...
Penso nisso, respiro, me aquieto...
Quero ficar aqui e ser
e há nesse desejo, eu sei, muito de ego
a ideia de permanecer plantada, por carinho
por intenção e por gesto,
em quem por mim foi amado ou amada...
Por isso o desejo de presença, por isso a crença
de que é necessário é preciso é urgente
dizer eu te amo a quem eu amo e estar presente
numa mensagem, num abraço, num olhar.
Sou desse tipo
estou desse tipo
e nada tem me convencido
de que é necessário mudar.